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Pão, circo e carne: o Carnaval como rito de passagem

Vitória Barreto
Colunista On: Vitória BarretoPsicóloga, mestra em educação e especialista em Psicologia Analítica
'A Luta Entre o Carnaval e a Quaresma''A Luta Entre o Carnaval e a Quaresma', do pintor renascentista holandês e flamengo Pieter Bruegel, o Velho, em 1559

Comer ou não comer a carne? Gozar ou não gozar dos prazeres da carne? A carne vale? Quanto vale a carne? Contam por aí que Deus moldou o barro até este se tornar carne em suas mãos. Há quem literalize esse mito sobre a origem da humanidade, há quem o veja como símbolo, como narrativa e alegoria que desenha na nossa imaginação o nascimento da nossa raça – a humana.  


Lembro que, quando eu era pequena, uma das coisas que eu mais amava era brincar com a terra, o barro e a areia molhada da beira do mar. Brincar com o que dá para moldar. Lembro da sensação de modelar a massa disforme com minhas mãos e dali surgir algum ser, que nunca se transformou em carne nas minhas mãos. Transformar barro em carne é proeza exclusiva de Deus, mas me parece que, quando uma criança brinca com o barro, ela chega bem perto da natureza criadora que molda entre os dedos a criatura. Há na criança, assim como há na natureza, o divino, o espontaneamente divino.  


Voltando para a carne, vamos falar mais sobre ela, aquela que é retirada da boca dos homens no período da Quaresma como forma de limpar o corpo (que, por ironia, também é carne) para se preparar para a Páscoa, a ressurreição de Cristo. O calendário católico se faz nessa ordem: Carnaval, Quaresma e Páscoa. A festa da carne, a retirada da carne como preparação para a ressurreição e, enfim, a ressurreição.  


Dito isso, eu me pergunto: desde quando a carne passou a ser um problema para a ascensão? Desde quando a carne passou a ser um símbolo do impuro, daquilo que não pode habitar o sagrado? Separar a carne (enquanto símbolo) do sagrado foi um dos maiores equívocos cometidos por uma pequena parcela poderosa da humanidade. Os homens autodeclarados porta-vozes dos ideais cristãos nos disseram: a carne é profana e nela não habita o sagrado.  


Daí passamos a associar o impuro à carne e a enxergar os prazeres da carne como impuros. Pois então eu lhe digo a Boa Nova: a impureza não está na carne. A sujeira, o veneno estão nos modos como habitamos a carne, pois não há sagrado que não seja experimentado no próprio barro que é o nosso corpo de carne.  


A “minha carne é de Carnaval”, e não há quem me tire dela. A briga entre o Carnaval e a Quaresma é a luta entre a carne e o espírito. Mas quem disse que um está contra o outro? A História tem a resposta: a Igreja Católica disse e repetiu isso ao longo dos séculos. Uma mentira contada muitas vezes vai sendo internalizada como uma verdade.  


É dessa cisão oligofrênica que nasceu o imaginário de termos que “lutar contra a carne”. Se nós somos carne, não temos que lutar contra ela, pelo contrário. Nós temos que habitá-la com consciência, nós não precisamos negá-la. O convite é honrá-la, habitá-la sabendo do seu caráter perecível e, ao mesmo tempo, divino. A carne contém o éter.  


Acreditar que a carne é suja e pecaminosa é um modo disfuncional de habitar a crueza visceral que é ser humano. Isso não funciona. Seus efeitos são a quebra artificial do que é uno: carne e espírito, um contendo o outro.  



O Carnaval, festa popular que atrai cerca de 53 milhões de pessoas em todo o Brasil, tem suas origens nos festivais pagãos primitivos de séculos atrás, tendo evoluído depois para as festas dos antigos romanos, antes de o cristianismo se tornar a religião oficial do Império Romano. O Carnaval foi incorporado no calendário católico e, olhando bem para a ordem das coisas, não é curioso vir primeiro o Carnaval, depois a Quaresma e, então, a Páscoa?  


Primeiro desce para a carne, depois tira a carne e, depois, ressuscita. Vai para o impuro, purifica, eleva. A palavra “Carnaval” vem do latim carnelevarium, que quer dizer algo como remover ou retirar a carne. Mas, por ironia, é justamente no Carnaval que encarnamos a carne em suas mil e uma formas e jeitos.  


Sabe aquela expressão “pão e circo” (panis et circenses)? Essa frase é atribuída a Juvenal, um poeta romano que, em suas Sátiras, no final do primeiro século da era cristã, trouxe uma crítica à estrutura social da época.  


Ao longo dos anos, essa expressão foi sendo usada de muitas formas, principalmente no campo da política. Eu a trago aqui para dizer que nós precisamos de pão (comida), nós precisamos de circo (diversão) e nós somos carne (festejar no corpo).  


O homo ludens, o homem lúdico, expressão cunhada pelo linguista holandês Johan Huizinga, é esse homem que brinca, festeja, goza, gargalha e dança. É o homem que mantém vivo em si o seu puer (criança), sem perder de vista o seu senex (adulto). O que seria da corte sem o bufão, o bobo, aquele que era pago para divertir o rei?  


Sim, a carne vale, e diversão é para ser levada a sério, como dizia em alto e bom tom o gênio brincante Chico Science. O Carnaval é a catarse coletiva em riso, choro, gozo e suor. É o rito de passagem alegre para o novo ano, que finalmente se inicia. É o respiro que diz que vamos iniciar celebrando, pulando e cantando – tudo junto.  


A carne vale, e vale muito. Habitá-la no Carnaval é um exercício de integração dos polos que nunca deveriam ter sido separados. Afinal, já dizia o mestre: “Assim na terra como no céu”. Assim na carne, como no espírito. Assim em cima, como embaixo. Deus não habita em cima, nem embaixo. Ele habita o entre. Já o Diabo, divide.  


Pois bem, seja nas ruas, nas encruzilhadas, nos retiros ou nas matas, a carne vale. A sua carne vale. Habite-a e festeje-a. Ela é tão perecível quanto sagrada.  


Ontem foi Quarta-Feira de Cinzas. Hoje o ano finalmente se inicia. Celebremos a carne que continuamos habitando em cada dia do extraordinário cotidiano reprodutivo e criativo de nossas tão sagradas quanto profanas vidas.  


(Agora, já no fim dessa conversa, me lembro novamente do barro. Certa vez, eu vi um menino brincando, moldando barro na beira do rio Almada, no sul da Bahia. Eu olhei e vi. Eu não sei exatamente dizer como isso aconteceu, mas, em suas mãos, estava Deus).


Imagem feita com IA

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Vitória Barreto

Vitória Barreto

Vitória Barreto é psicóloga com onze anos de atuação, é mestra em educação (UFBA), especialista em Dependência Química (UNIFESP), especialista em Psicologia Analítica (IJBA) e coordenadora de grupos operativos (NPSB). Atua como psicoterapeuta junguiana, realiza atendimentos no ambulatório do Hospital Cardio Pulmonar no Programa de Cessação Tabágica, é pesquisadora do fenômeno da escolarização e é defensora da Infância Livre. Já atuou como psicóloga hospitalar (HUPES e HGRS) e psicóloga escolar. Defende uma psicologia crítica, pautada na garantia dos direitos humanos, nos direitos na Terra e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

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