A chegada do mês de novembro marca o aumento dos debates em torno da temática racial no nosso país. Afinal, este é o mês em que celebramos o Dia da Consciência Negra, símbolo da luta do povo negro desde os tempos de escravidão, e que tem uma importância, na minha opinião, cada vez mais reconhecida. Para quem vive nas favelas da cidade mais preta fora da África, é o momento de refletir sobre uma luta perene, que merece ser valorizada sempre.
O surgimento das periferias brasileiras está indissociado da questão racial. Isso porque o processo de favelização começa a ocorrer justamente no final do século XIX, depois que a escravidão foi legalmente abolida no país. Como esse marco não veio acompanhado de um processo de reparação e justiça social, as pessoas que eram escravizadas se viram, ali, completamente à margem de qualquer política pública que lhes concedesse educação, saúde, emprego e, óbvio, moradia.
Desde então, são nas favelas onde vivem grande parte das pessoas negras aqui no Brasil. Um dos estudos mais recentes, do Instituto Locomotiva, divulgou no ano de 2021 que 67% dos habitantes de regiões periféricas são pretos e pardos. Na prática, isso significa que, a cada três moradores de uma favela, dois são negros. Aqui em Salvador, cuja população negra ultrapassa os 82%, tenho certeza que o número é ainda maior. Com base na minha vivência, arrisco dizer que passa de 90%.
Todos esses números, somados ao preâmbulo histórico, são fundamentais para afirmar uma coisa: as periferias brasileiras são negras. É impossível debater negritude no Brasil sem debater a questão das favelas, e vice-versa. Portanto, não tenho dúvidas de que a luta por mais direitos e dignidade em cada quebrada também é, no fundo, uma das formas mais contundentes de combater o racismo.
A luta antirracista, na minha concepção, passa por romper uma série de aspectos históricos e estruturais que fazem, por exemplo, as favelas caírem no esquecimento ou, ainda pior, nos estereótipos. Isso não acontece em vão: um ciclo vicioso faz com que esses lugares sejam estigmatizados pelas pessoas e, assim, passem a ser relegados pelo Estado. E, como saímos de um modelo de país escravocrata, as nossas vidas são vistas como menos importantes.
Quem mora em comunidade sabe como esse é o tipo de lugar que reúne muito talento e potência. Não é à toa que daqui saem grandes atletas, músicos e, cada vez mais, referências das mais diferentes áreas do conhecimento. Durante muito tempo, no entanto, o que chegava para nós eram apenas as migalhas, e os resquícios desse passado de desprezo ainda ecoam por aqui. Pouco a pouco, temos conseguido mudar essa realidade.
Para mim, sempre ficou evidente que eu tinha que lutar pelas pessoas das periferias porque existem duas dimensões de violência que precisam ser superadas: a primeira é a dimensão física, que demanda a nossa defesa por moradias mais dignas, saneamento básico, mobilidade, etc. Essa é uma dimensão sempre muito urgente porque diz respeito à sobrevivência. Só que não podemos deixar de lembrar de uma segunda dimensão dessa luta, que é mais subjetiva.
A dimensão subjetiva diz respeito, basicamente, ao que eu sempre chamo de “direito de sonhar”. Tudo que escrevi até agora faz parte de um contexto que leva as pessoas de comunidade a terem a autoestima cortada pela raiz. Mas não me refiro à autoestima apenas no sentido estético, e sim em um sentido mais amplo, que trata das possibilidades e dos horizontes que cada um pode vislumbrar.
Na minha adolescência, por exemplo, o meu maior sonho era viajar de avião, e eu só consegui realizá-lo em pouco tempo graças a uma oportunidade muito rara dentro da minha realidade. Foi ao realizar esse sonho que eu percebi que poderia sonhar com algo ainda maior e, principalmente, contribuir para que outras pessoas também possam. Caso contrário, eu provavelmente estaria sonhando em viajar de avião até hoje, e sem os recursos necessários.
É por isso que todo o meu trabalho é pautado não apenas no presente, mas também no futuro. Desde a fundação do Centro Cultural Isabela Sousa, intensificamos as nossas ações com as crianças da periferia, justamente para não permitir que as circunstâncias históricas do nosso país levem elas a crer que é impossível sonhar. Hoje, temos meninos e meninas que querem ser médicos, advogados, artistas e até presidentes. E, ao garantir condições de estudo, lazer e cidadania, temos levado a sério a missão de mostrar que eles de fato podem.
Voltando à reflexão que intitula esta coluna, é impossível desconsiderar que toda essa luta é intrínseca à questão racial. Viver nas periferias é lidar diariamente com as contradições de um país potente, mas que ainda precisa encarar com honestidade as heranças de um passado escravista, que fundamenta o racismo estrutural até hoje e que faz as nossas favelas serem tratadas da forma que são.
Por esse motivo, não deixo de trabalhar um minuto sequer e celebro, com muita serenidade, cada melhoria que conquistamos, por menor que possa parecer. Ao final de cada dia, agradeço pelas oportunidades que tive e que me permitem, hoje, buscar avanços na vida de tanta gente das periferias soteropolitanas. Dia após dia, de grão em grão, sei que isso contribui para diminuir a chaga do racismo.
*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Aratu On.