No pa&iacute;s que mais mata pessoas transexuais no mundo h&aacute; treze anos consecutivos, uma mulher trans, policial militar da Bahia&nbsp;lotada em Feira de Santana, pediu &agrave; comandante para ter o nome retificado na corpora&ccedil;&atilde;o - e o pedido foi aceito -. Desde agosto, Kim Villanelle Figueiredo s&oacute; &eacute; chamada no feminino, o que, para ela, nem foi uma surpresa entre os colegas.

&ldquo;Na verdade, acho que sempe souberam, pelo meu jeito, que eu era mulher. Depois, a minha &lsquo;comandanta&rsquo;, que &eacute; uma pessoa excepcional, me chamou para conversar. Est&aacute;vamos conversando normalmente, a&iacute; eu falei: &lsquo;Sou mulher mesmo, queria at&eacute; lhe falar. N&atilde;o quero mais cortar o meu cabelo&rsquo;. Isso foi em maio. A&iacute;, eu falei para ela que queria mudar o meu nome e g&ecirc;nero, e ela falou que tudo bem, que est&aacute; do meu lado, que eu poderia contar com ela a qualquer momento&rdquo;, relembra ela em entrevista ao Aratu On.

No dia em que Kim, que est&aacute; na PM h&aacute; oito anos, chegou no trabalho oficialmente como mulher pela primeira vez, as colegas PMs usaram batom para receb&ecirc;-la. &ldquo;Sempre recebo s&oacute; abra&ccedil;os. Eu me lembro da primeira que me recebeu, ela estava com um batom rosa um pouco cintilante, lindo. E ela disse: &lsquo;Olha, a major pediu para a gente vir de batom&rsquo;. Depois, vieram as outras. E at&eacute; as que eu s&oacute; via de longe estavam de batom. Eu me senti t&atilde;o bem nesse dia&rdquo;.

Kim sempre foi mulher, e quem convivia com ela j&aacute; sabia disso. Ainda na inf&acirc;ncia, para evitar preocupa&ccedil;&otilde;es, ela decidiu n&atilde;o compartilhar com fam&iacute;lia as diversas vezes em que foi v&iacute;tima de bullying na rua. &ldquo;Eu n&atilde;o falava em casa, porque em casa era t&atilde;o bom&rdquo;.

Mas&nbsp;o tempo passou: na vida adulta, Kim queria ser Kim, se vestir como Kim, falar como Kim e trabalhar como Kim. E ela, que est&aacute; terminando o curso de Direito na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), conhecia os seus direitos e, diferentemente de muitas outras, teve condi&ccedil;&otilde;es e apoio para ir atr&aacute;s deles.

LEIA MAIS:&nbsp;<a href="https://aratuon.com.br/noticia/geral/na-oceania-tupiniquim-mais-pessoas-trans-e-travestis-foram-mortas-em-2020-do-que-em-todo-o-ano-passado" target="_blank">Na Oce&acirc;nia tupiniquim, mais pessoas trans e travestis foram mortas em 2020 do que em todo o ano passado</a>

&ldquo;Eu sempre fui mulher. Acho que, l&aacute;, eu fingia. E n&atilde;o era bom, n&eacute;, &eacute; uma coisa que eu acho que me deixava doente. Por outro lado, eu n&atilde;o sentia que estava me escondendo do mundo, ou que estava com medo do mundo, porque eu nunca tive medo. Eu fazia terapia, ent&atilde;o, teve um momento em que eu queria me vestir do meu jeito, e comecei. Eu precisava ser eu, e precisava de um trabalho, e o meu trabalho era aquele. Foi natural, bem natural&rdquo;.

MERCADO DE TRABALHO

De acordo com o relat&oacute;rio de 2021 da Transgender Europe (TGEU), que levanta informa&ccedil;&otilde;es sobre a situa&ccedil;&atilde;o de pessoas LGBTQIAP+ em todo o mundo, 70% de todos os assassinatos notificados entre 2020 e 2021 aconteceram na Am&eacute;rica Latina, sendo que 33%&nbsp;no Brasil. A&nbsp;Bahia, de acordo com um relat&oacute;rio do Grupo Gay da Bahia (GGB), &eacute; o segundo estado com maior n&uacute;mero de mortes, e Salvador &eacute; a capital mais violenta para LGBTQIAP+ do pa&iacute;s.

Quando a gente fala em empregabilidade, os n&uacute;meros continuam estarrecedores: a Articula&ccedil;&atilde;o Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) estima que 90% das pessoas transexuais trabalhem como profissionais do sexo no Brasil, principalmente mulheres trans e travestis. De acordo com o professor da Universidade Federal da Bahia, Felipe Fernandes, que pesquisa g&ecirc;nero, mulheres trans, geralmente, acabam trabalhando&nbsp;em tr&ecirc;s grandes &aacute;reas.

&ldquo;Um deles &eacute; o campo da est&eacute;tica, como cabeleireiras, manicures. Nesses lugares, principalmente em sal&otilde;es de beleza de bairro, ou sal&otilde;es de beleza pr&oacute;prios, quando a gente v&ecirc; uma mulher trans, n&atilde;o parece que ela est&aacute; fora de contexto. O segundo, um pouco mais presente para as mulheres trans, &eacute; o campo das artes. A gente v&ecirc; muitas mulheres trans trabalhando na noite, em bares, principalmente bares voltados para o p&uacute;blico LGBTQIA+. E um terceiro campo &eacute; a prostitui&ccedil;&atilde;o e a ind&uacute;stria do sexo, principalmente para aquelas meninas trans que passaram por uma situa&ccedil;&atilde;o de transfobia muito extremada na fam&iacute;lia, e que iniciaram o processo de transi&ccedil;&atilde;o muito novinhas. Muitas vezes, &eacute; o &uacute;nico lugar que as aceita&rdquo;.

<iframe allow="accelerometer; autoplay; clipboard-write; encrypted-media; gyroscope; picture-in-picture" allowfullscreen="" frameborder="0" height="409" src="https://www.youtube.com/embed/wu_LLUQYgMU" title="Professor da UFBA fala sobre trans e travestis" width="727"></iframe>

LUTA

Kim n&atilde;o foi a primeira PM a baiana a fazer a transi&ccedil;&atilde;o de g&ecirc;nero enquanto trabalhava na pol&iacute;cia. No dia 6 de mar&ccedil;o de 2018, depois da transi&ccedil;&atilde;o, a soldado Jane Oliveira foi exonerada sob a justificativa de ter promovido ofensas contra um supervisor hier&aacute;rquico. Para ela, por&eacute;m, o caso se tratou de transfobia, termo definido como &ldquo;discrimina&ccedil;&atilde;o contra as pessoas transexuais e transg&ecirc;neros&rdquo;.

A &ldquo;ofensa&rdquo; que Jane teria cometido contra um superior aconteceu em uma madrugada no munic&iacute;pio de Guanambi, a 674 km de Salvador. Ela estava em um bar com amigos, quando foi abordada por um cabo que, como ela alega, a perseguia e assediava h&aacute; anos, e uma discuss&atilde;o come&ccedil;ou.

O homem prestou queixa no&nbsp;17&ordm; Batalh&atilde;o de Pol&iacute;cia Militar, acusando a colega - que estava abaixo dele na hieraruia da pol&iacute;cia - de ofend&ecirc;-lo. O resultado foi um Processo Administrativo Disciplinar (DAP) contra Jane, e, algum tempo depois, a demiss&atilde;o dela. Poucos meses ap&oacute;s o ocorrido, o homem que a denunciou foi promovido a sargento.

Desde 2019, mesmo ano em que a PM passou a admitir que candidatos se inscrevessem nos concursos usando o nome social, Jane luta na Justi&ccedil;a para ser reefetivada. Mas, at&eacute; agora, sem sucesso. Em 2016, um decreto presidencial (N&ordm; 8.727) determinou que o nome social e a identidade de g&ecirc;nero de pessoas travestis e transexuais fossem respeitados no &acirc;mbito da administra&ccedil;&atilde;o p&uacute;blica federal. O texto ainda serve como par&acirc;metro para que estados e munic&iacute;pios tamb&eacute;m adotem o uso do nome social.

No dia primeiro de junho deste ano, a Assembleia Legislativa (Alba) aprovou o Projeto de Lei (PL) Milena Passos (22.845/2018), que determina que san&ccedil;&otilde;es admistrativas sejam adotadas contra quem promover atos de discrimina&ccedil;&atilde;o a pessoas LGBT, incluindo quem ocupa cargos p&uacute;blicos. Al&eacute;m disso, respons&aacute;veis por estabelecimentos comerciais, industriais, associa&ccedil;&otilde;es, prestadores de servi&ccedil;o, entre outros, poder&atilde;o ser penalizados caso discriminem pessoas da comunidade LGBTQIAP+.

Entre os atos discriminat&oacute;rios listados na PL est&atilde;o: &ldquo;Impedir, obstar ou dificultar o acesso de pessoas, devidamente habilitadas a qualquer cargo ou emprego da Administra&ccedil;&atilde;o direta ou indireta, bem como das concession&aacute;rias e permission&aacute;rias de servi&ccedil;os p&uacute;blicos; Negar, obstar ou dificultar o acesso de pessoas, devidamente habilitadas a qualquer cargo ou emprego em empresa privada; Negar, obstar ou dificultar o acesso de pessoas, devidamente habilitadas a qualquer cargo ou emprego em empresa privada&rdquo;.

Millena Passos, que est&aacute; &agrave; frente da secretaria executiva do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher, da vice-presid&ecirc;ncia da Uni&atilde;o Nacional LGBT e da coordena&ccedil;&atilde;o do Grupo Gay da Bahia (GGB), sente orgulho em dividir o nome com a PL. &ldquo;Acho que a gente precisa homenagear as pessoas em vida&rdquo;.

<img alt="" src="https://storage.googleapis.com/aratu-backend/fotos/aratu_noticias/98729/mg/WhatsApp Image 2022-09-06 at 16.36.35..jpg" style="width: 600px; height: 750px;" />

De acordo com ela, n&atilde;o &eacute; f&aacute;cil ser a primeira mulher trans em um lugar - como aconteceu com Jane. Mas, n&atilde;o h&aacute; muita sa&iacute;da: para que outras consigam entrar, algu&eacute;m precisa dar o primeiro passo:

&ldquo;O mercado de trabalho ainda &eacute; velado. Eu trabalho na Secretaria de Mulheres, sou secret&aacute;ria Executiva do Conselho da Mulher, sou a primeira mulher trans no Brasil a assumir essa posi&ccedil;&atilde;o. O que &eacute; uma vergonha. &Eacute; uma vergonha para mim dizer isso. &Eacute; motivo de orgulho para muitas pessoas, mas&nbsp;eu estou desbravando esses espa&ccedil;os para que outras pessoas como eu ocupem v&aacute;rios espa&ccedil;os. O que a gente quer &eacute; mais pessoas trans no mercado de trabalho&rdquo;.

O site TransEmpregos, maior plataforma de vagas para transexuais do Brasil, fundado 2013, re&uacute;ne e divulga centenas de oportunidades diariamente. Mas, como ressalta o pesquisador Felipe Fernandes, n&atilde;o basta empregar: &eacute; preciso que as empresas e institui&ccedil;&otilde;es permitam que essa pessoa fique.&nbsp;

&ldquo;Ariane Moreira de Sena, que foi a primeira psic&oacute;loga trans da Bahia, fala de uma experi&ecirc;ncias que elas vivem que &eacute; a &lsquo;Solid&atilde;o da Mulher Trans&rsquo;. E o que seria essa solid&atilde;o? A sociedade &eacute; t&atilde;o fechada para elas que, mesmo que elas estejam em um emprego, elas est&atilde;o s&oacute;s. No emprego, elas n&atilde;o v&atilde;o ter o nome social respeitado, v&atilde;o estar o tempo todo sob suspei&ccedil;&atilde;o, como se estivessem mascarando algo. A pessoa trans precisa de uma s&eacute;rie de pol&iacute;ticas internas, administrativas. Por exemplo, a quest&atilde;o do banheiro. A gente tem que pensar o seguinte: uma mulher n&atilde;o vai suportar usar um banheiro masculino, isso n&atilde;o existe&rdquo;.

PARA N&Atilde;O&nbsp;ERRAR:

Fonte: Manual de Comunica&ccedil;&atilde;o LGBTI+ da Alian&ccedil;a Nacional LGBTI

Identidade de g&ecirc;nero: &Eacute; como uma pessoa se reconhece: pode ser no g&ecirc;nero feminino, no masculino, em uma combina&ccedil;&atilde;o entre os dois ou at&eacute; mesmo em nenhum dos dois.

Transg&ecirc;nero: S&atilde;o pessoas que n&atilde;o se identificam com o g&ecirc;nero que foi designado a elas ao nascer. Travestis e transexuais, por exempo, s&atilde;o transg&ecirc;nero.

Cisg&ecirc;nero: S&atilde;o pessoas que se identificam com o g&ecirc;nero que foi designado a elas ao nascer.

Travesti: &Eacute; uma pessoa que, ao nascer, foi designada ao g&ecirc;nero masculino, mas se identifica com o g&ecirc;nero feminino. A palavra &ldquo;Traveco&rdquo; &eacute; extremamente pejorativa, usada para atacar e desmerecer Travestis.

Transexual: &Eacute; quem n&atilde;o se identifica com o sexo que foi designado a ela no nascimento. Algumas pessoas transexuais decidem fazer tratamentos m&eacute;dicos, como a terapia hormonal e a cirurgia de redesigna&ccedil;&atilde;o de sexo.

Acompanhe nossas transmiss&otilde;es ao vivo no&nbsp;<a href="https://aratuon.com.br/aovivo/aratuon" target="_blank">www.aratuon.com.br/aovivo</a>. Nos siga no&nbsp;<a href="https://www.instagram.com/aratuonline/" target="_blank">Instagram</a>,&nbsp;<a href="https://www.facebook.com/aratuon/" target="_blank">Facebook</a>&nbsp;e&nbsp;<a href="https://twitter.com/aratuonline?ref_src=twsrc%5Egoogle%7Ctwcamp%5Eserp%7Ctwgr%5Eauthor" target="_blank">Twitter</a>. Quer mandar uma den&uacute;ncia ou sugest&atilde;o de pauta, mande WhatsApp para&nbsp;<a href="tel:(71) 99940 - 7440">(71) 99940 - 7440</a>. Nos insira nos seus grupos!

Tudo sobre: nome retificado

Kim: a história da mulher trans que pediu para ter o nome corrigido pela PM da Bahia; "recebo só abraços"