Nesta sexta-feira (26/8),&nbsp;Dia Internacional da Igualdade Feminina, a advogada e professora Daniela Portugal, presidente da Comiss&atilde;o da Mulher Advogada da OAB-BA, falou sobre o tema, em entrevista. Ela &eacute;&nbsp;doutora e mestre em Direito P&uacute;blico pela Ufba e professora de Direito Penal e Criminologia na Ufba e na Faculdade Baiana de Direito.

De acordo com dados fornecidos pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em 2021, as advogadas s&atilde;o maioria no pa&iacute;s. Voc&ecirc; observa essa presen&ccedil;a majoritariamente feminina nos ambientes jur&iacute;dicos? Como voc&ecirc; percebe as quest&otilde;es de g&ecirc;nero nesses espa&ccedil;os?

Daniela: Infelizmente, ainda vivemos em uma sociedade estruturada no patriarcado. Isso significa que toda a nossa cultura, todos os nossos espa&ccedil;os sociais, ir&atilde;o estabelecer formas, mais ou menos evidentes (mas sempre presentes) de favorecer os homens. Podemos exemplificar isso desde situa&ccedil;&otilde;es aparentemente sutis, como o fato de serem mais ouvidos ao pedirem a palavra, ou de nos interromperem a todo instante no nosso exerc&iacute;cio de fala, a dados mais objetivos, como diferen&ccedil;as salariais em raz&atilde;o do g&ecirc;nero. Veja que essa distribui&ccedil;&atilde;o desigual de poder, que coloca todos os homens em um lugar de privil&eacute;gio, de vantagem &ndash; em especial o homem branco, cisg&ecirc;nero, heterossexual &ndash; independe da vontade ou de uma a&ccedil;&atilde;o direta deles, trata-se de uma estrutura social, est&aacute; posta, assim como o ar em que respiramos. A desconstru&ccedil;&atilde;o desse paradigma, diferentemente, depende do engajamento n&atilde;o apenas de mulheres, mas tamb&eacute;m de homens conscientes dos v&aacute;rios preju&iacute;zos sociais da desigualdade entre os g&ecirc;neros. Novas pol&iacute;ticas dependem de vontade coletiva de mudan&ccedil;a e, sobretudo, de a&ccedil;&otilde;es afirmativas.

Nos ambientes jur&iacute;dicos, assim como em outros espa&ccedil;os sociais, a presen&ccedil;a de mulheres ainda &eacute; relegada &agrave; margem (metaf&oacute;rica e literalmente). S&atilde;o poucos os espa&ccedil;os protagonizados e liderados por mulheres. A for&ccedil;a de trabalho feminina, seja nas atividades dom&eacute;sticas ou fora de casa, ainda n&atilde;o &eacute; socialmente valorizada, ou economicamente monetizada da forma devida. A economia capitalista neoliberal est&aacute; assentada na explora&ccedil;&atilde;o, opress&atilde;o e distribui&ccedil;&atilde;o desigual de riquezas. Consequentemente, as constru&ccedil;&otilde;es patriarcais de subalterniza&ccedil;&atilde;o da mulher e desvaloriza&ccedil;&atilde;o de sua for&ccedil;a produtiva servem perfeitamente a esse modelo, pois justificam e naturalizam a aus&ecirc;ncia de poder pol&iacute;tico e econ&ocirc;mico das mulheres.

O fato de termos rompido as barreiras de segrega&ccedil;&atilde;o horizontal que impediam mulheres de acessarem universidades e outros espa&ccedil;os p&uacute;blicos, coloca-nos alguns passos &agrave; frente nesse longo caminho de mudan&ccedil;as, mas ainda estamos muito distantes de extinguir os obst&aacute;culos verticais que ainda hoje impedem que vejamos maioria feminina em cortes superiores ou no topo de outras estruturas. Portanto, n&atilde;o h&aacute; como dissociar a luta pela igualdade de g&ecirc;nero de uma pauta conjunta, que alinhe as cr&iacute;ticas e desconstru&ccedil;&otilde;es necess&aacute;rias ao patriarcado, ao racismo e ao neoliberalismo. &nbsp;

Apesar da maioria feminina, n&atilde;o h&aacute; uma distribui&ccedil;&atilde;o igualit&aacute;ria nos cargos de lideran&ccedil;a no mundo jur&iacute;dico. Quais os cargos mais comumente ocupados por mulheres? Poderia mencionar exemplos de juristas que se destacam em posi&ccedil;&otilde;es de lideran&ccedil;a?

Os cargos comumente ocupados por mulheres s&atilde;o aqueles que representam nenhum ou menor valor no nosso sistema capitalista neoliberal. Da&iacute; a necessidade de se frisar que existe uma rela&ccedil;&atilde;o indissoci&aacute;vel entre patriarcado e capitalismo, uma vez que a desigualdade entre os g&ecirc;neros serve, nesse modelo econ&ocirc;mico e pol&iacute;tico, para naturalizar e invisibilizar a hiperexplora&ccedil;&atilde;o do trabalho feminino. Em um sistema capitalista, a atribui&ccedil;&atilde;o de valor (seja ao trabalho ou a outras mercadorias) &eacute; uma atividade de abstra&ccedil;&atilde;o n&atilde;o neutra. Como bem coloca Taylisi Leite em sua obra &ldquo;Cr&iacute;tica ao feminismo liberal: valor-clivagem e marxismo feminista&rdquo;, &ldquo;as tarefas &lsquo;de mulher&rsquo; n&atilde;o s&atilde;o tomadas nas estruturas produtivas e n&atilde;o se convertem em trabalho (abstrato) assalariado&rdquo;. Portanto, todas as atividades necess&aacute;rias ao bom funcionamento do nosso sistema, mas para as quais n&atilde;o se atribui nenhum valor significativo na nossa sociedade capitalista, s&atilde;o predominantemente ocupadas por mulheres. Assim, quais s&atilde;o os cargos comumente ocupados por mulheres? Ora, s&atilde;o aqueles menos valorizados. O valor n&atilde;o &eacute; neutro, ele tem g&ecirc;nero e cor.&nbsp;

Ao longo dos s&eacute;culos s&atilde;o muitos os movimentos de luta contra as opress&otilde;es de g&ecirc;nero, e eu poderia perfeitamente citar mulheres e, no caso da pergunta posta, juristas que se destacam em posi&ccedil;&otilde;es de lideran&ccedil;a. Entretanto, penso no rev&eacute;s pol&iacute;tico de destacar aqui alguns poucos nomes, quando sabemos que, num sentido social e coletivo, n&oacute;s mulheres ainda estamos subrepresentadas em todos os espa&ccedil;os pol&iacute;ticos de tomadas de decis&atilde;o. Destacar algumas de n&oacute;s como exemplo daquelas que chegaram a essas posi&ccedil;&otilde;es de lideran&ccedil;a alimenta a l&oacute;gica do empoderamento individual como suposta via de supera&ccedil;&atilde;o do paradigma patriarcal e isso &eacute; uma arriscada, ing&ecirc;nua e, por vezes, perversa armadilha. A exist&ecirc;ncia de algumas mulheres &ldquo;no topo&rdquo; n&atilde;o faz dessas estruturas espa&ccedil;os mais democr&aacute;ticos e, em muitos casos, &eacute; ainda utilizada para legitimar a segrega&ccedil;&atilde;o de g&ecirc;nero enquanto pr&aacute;tica estrutural, desviando o foco para os obst&aacute;culos ainda impostos &agrave;s mulheres enquanto corpo social coletivo. Ou a luta &eacute; coletiva, ou n&atilde;o nos resta nada sen&atilde;o nos conformarmos com esse sistema de explora&ccedil;&atilde;o.

A press&atilde;o est&eacute;tica e comportamental no meio jur&iacute;dico &eacute; muito maior sobre as mulheres. Al&eacute;m disso, a maternidade se apresenta como um empecilho &agrave; carreira, porque impacta na substitui&ccedil;&atilde;o de cargos e jornadas no trabalho. Na sua opini&atilde;o, quais os principais desafios para as mulheres neste meio? Voc&ecirc; percebe sororidade nesses espa&ccedil;os?

Nosso grande desafio hoje &eacute; impor que as especificidades de nosso g&ecirc;nero (a exemplo da gesta&ccedil;&atilde;o e da amamenta&ccedil;&atilde;o) sejam normativa e politicamente acolhidas no nosso exerc&iacute;cio profissional, a fim de que n&atilde;o nos sejam impostos obst&aacute;culos desiguais. Trata-se aqui de um olhar capaz de identificar essas especificidades e corrigir eventuais opress&otilde;es. Como bem destacou o CNJ no recente &ldquo;Protocolo para julgamento com perspectiva de g&ecirc;nero&rdquo;, publicado em 2021, &ldquo;a desconsidera&ccedil;&atilde;o das diferen&ccedil;as econ&ocirc;micas, culturais, sociais e de g&ecirc;nero das partes na rela&ccedil;&atilde;o jur&iacute;dica processual refor&ccedil;a uma postura formalista e uma compreens&atilde;o limitada e distante da realidade social, privilegiando o exerc&iacute;cio do poder dominante em detrimento da justi&ccedil;a substantiva&rdquo;.

Dessa forma, ao buscarmos a igualdade de g&ecirc;nero, o que se pretende &eacute; que nossas desigualdades naturais ou sociais n&atilde;o sirvam de instrumentos de opress&atilde;o guiados &agrave; exclus&atilde;o da presen&ccedil;a feminina na advocacia ou em outras carreiras jur&iacute;dicas. Em recente pesquisa realizada pela comiss&atilde;o da Mulher Advogada da OAB/BA, apuramos que entre as pessoas entrevistadas que afirmaram pensar, constantemente, em abandonar o exerc&iacute;cio da advocacia 75,57% s&atilde;o mulheres. Esse &eacute; um dado relevant&iacute;ssimo, e diretamente ligado ao fato de sermos as v&iacute;timas preferenciais de todas as formas de ass&eacute;dio (n&atilde;o apenas o sexual), aquelas que possuem as menores remunera&ccedil;&otilde;es e, ainda, v&iacute;timas mais frequentes de viola&ccedil;&otilde;es de prerrogativas no exerc&iacute;cio profissional. Podemos dizer que a exist&ecirc;ncia, pela primeira vez em 90 anos, de uma presid&ecirc;ncia feminina (e feminista!) na OAB/BA &eacute; representativa de um grito coletivo por mudan&ccedil;a, mas ainda leva tempo para chegarmos aonde queremos e merecemos estar social e profissionalmente.

H&aacute; empresas e escrit&oacute;rios de advocacia buscando equidade de g&ecirc;nero, influenciando positivamente as pr&oacute;ximas gera&ccedil;&otilde;es e contribuindo para termos mais mulheres protagonistas no universo jur&iacute;dico. Quais pol&iacute;ticas de equidade voc&ecirc; destaca como mais eficazes?

Penso que a paridade de g&ecirc;nero e racial s&atilde;o pol&iacute;ticas que devem ser constru&iacute;das nos mais variados espa&ccedil;os, inclusive em escrit&oacute;rios de advocacia. A democratiza&ccedil;&atilde;o desses espa&ccedil;os &eacute; importante, inclusive, para superar o tradicional vi&eacute;s monocular com o qual examinamos as complexas quest&otilde;es jur&iacute;dicas que nos s&atilde;o trazidas no dia a dia profissional. Se eu tenho uma equipe homog&ecirc;nea em termos de g&ecirc;nero, ra&ccedil;a, classe, idade e tantos outros marcadores, isso repercutir&aacute;, necessariamente, em um olhar padronizado e empobrecido para problemas que poderiam estar sendo discutidos sob uma perspectiva verdadeiramente plural e complexa. Direito &eacute; debate, &eacute; confronto de ideias. Se nossos espa&ccedil;os profissionais n&atilde;o s&atilde;o plurais, a nossa capacidade criativa e construtiva &eacute; inevitavelmente comprometida.

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