Riscos, limites e evidências: o que se sabe sobre testosterona para mulheres
A busca por terapia de reposição de testosterona entre mulheres tem crescido, impulsionada por pressões estéticas
Por Bruna Castelo Branco.
A busca por terapia de reposição de testosterona entre mulheres tem crescido, impulsionada por pressões estéticas, promessas de bem-estar e pela disseminação de conteúdos sobre hormônios nas redes sociais. Embora não existam formulações aprovadas especificamente para uso feminino nem dados oficiais sobre o aumento dessa procura, entidades médicas alertam para os riscos envolvidos.
Em maio de 2025, a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e o Departamento de Cardiologia da Mulher da Sociedade Brasileira de Cardiologia divulgaram uma nota conjunta reforçando que a única indicação reconhecida para uso terapêutico da testosterona em mulheres é o tratamento do transtorno do desejo sexual hipoativo (TDSH) na pós-menopausa.

“Muitas mulheres recorrem à testosterona em busca de benefícios como emagrecimento, aumento de massa magra, melhora do humor e da vitalidade, mesmo sem deficiência androgênica comprovada ou indicação formal respaldada por evidências científicas”, afirma o endocrinologista Felipe Henning Gaia Duarte, presidente da SBEM-SP.
Apesar de ser associada ao organismo masculino, a testosterona também é produzida em baixas quantidades pelos ovários e contribui para massa muscular, força, energia, saúde óssea e libido. Seus níveis caem gradualmente a partir dos 30 anos e costumam diminuir de forma mais acentuada na menopausa, influenciando humor, vitalidade e desejo sexual.
Em um contexto social que valoriza juventude e padrões estéticos rígidos, sinais naturais do envelhecimento têm sido tratados como problemas médicos, observa José Maria Soares Junior, presidente da Comissão de Ginecologia Endócrina da Febrasgo. “Em uma sociedade que valoriza juventude, vitalidade e um padrão estético rígido, sinais normais do envelhecimento feminino acabam medicalizados e pouco explorados no campo emocional”, afirma. Ele destaca que os limites da testosterona precisam ser explicitados, assim como seus riscos.

Indicação restrita ao TDSH
Estudos sobre reposição hormonal para mulheres com TDSH vêm sendo desenvolvidos há décadas. Uma revisão publicada em 2019 no The Lancet Diabetes & Endocrinology, com 46 ensaios clínicos e mais de 8 mil mulheres, indicou melhora de desejo, excitação, prazer e satisfação sexual com doses fisiológicas do hormônio, sem aumento significativo de efeitos adversos graves no curto prazo.
As conclusões embasam o Consenso Global sobre Terapia de Testosterona em Mulheres, referência internacional desde 2019. O documento reconhece indicação apenas para TDSH na pós-menopausa, após investigação de outras causas para a queda do desejo, e recomenda formulações que permitam controle rigoroso de dose e acompanhamento contínuo.
Fora desse escopo, o consenso não respalda o uso da testosterona para ganho de massa muscular, benefícios estéticos, melhora cognitiva, humor, vitalidade ou prevenção do envelhecimento. A ginecologista Helena Hachul De Campos, do Hospital Israelita Albert Einstein, reforça que a terapia hormonal clássica também exige critérios.
“Existem indicações e contraindicações para a terapia hormonal clássica (estroprogestativa), então é muito importante a gente acompanhar a paciente, porque podemos perder a janela de oportunidade de até 10 anos da menopausa ou 60 anos para iniciar a terapia hormonal”, afirma. “Mas é preciso ser consciente para indicar adequadamente após ver benefícios, riscos, avaliar anamnese, exame complementar e antecedentes”.
Pesquisas adicionais seguem inconclusivas. Uma análise da NHANES publicada na Nature em 2022 encontrou correlação entre níveis mais altos de testosterona e maior densidade óssea em mulheres de 40 a 60 anos, mas não estabeleceu causalidade. Outro estudo, de 2025, no JAMA, mostrou efeitos modestos na força e na recuperação funcional de idosas após fratura de quadril submetidas a fisioterapia combinada ao hormônio — resultados preliminares, sem impacto na prática clínica. Na área cognitiva, pesquisa da Clinical Endocrinology (2025) apontou associação entre testosterona e proteção cognitiva em mulheres pós-menopáusicas, também sem comprovação de causalidade.

Riscos e efeitos adversos
A popularização de conteúdos sobre hormônios nas redes tem alterado a dinâmica nos consultórios. “Agora, é comum que as mulheres cheguem ao consultório não mais com queixas abertas para investigação, mas com demandas específicas e um autodiagnóstico baseado em conteúdos que prometem a testosterona como solução mágica para cansaço, envelhecimento e baixa libido”, diz Soares Junior.
O uso fora das indicações reconhecidas pode provocar virilização — acne, queda de cabelo, engrossamento da voz, aumento de pelos e do clitóris —, alterações metabólicas, resistência à insulina, piora do perfil lipídico e potenciais riscos cardiovasculares. Há relatos de ansiedade, impulsividade, agressividade e danos hepáticos, especialmente com formulários inadequados. No campo ginecológico, podem ocorrer irregularidades menstruais, atrofia endometrial e prejuízo à fertilidade.
“A hipertrofia clitoriana está entre os efeitos mais angustiantes para as pacientes e pode ser irreversível mesmo após a suspensão do hormônio”, alerta o especialista da Febrasgo. Segundo ele, o uso seguro depende de cautela e alinhamento entre médico e paciente. “Que deixe muito claros os benefícios não comprovados, os riscos reais e a linha tênue entre tratamento médico e a busca por um ideal cultural de juventude eterna”, pontua.
Desafio na medição do hormônio
Além da falta de evidências para usos ampliados, medir testosterona em mulheres é tarefa complexa. Os níveis são muito baixos e muitas vezes próximos ao limite de detecção dos imunoensaios, técnica mais usada pelos laboratórios. “Por este motivo, alguns laboratórios, acertadamente, apenas colocam que o valor de testosterona em mulheres é abaixo de certo ponto, como ‘menor que 63 nanogramas por decilitro’, ao invés de colocar ‘de 12 a 63’”, explica Duarte.

A ausência de valores de referência amplos e validados dificulta a interpretação, assim como a variação entre métodos, já que cada técnica pode produzir resultados distintos. A espectrometria de massa é o padrão-ouro, mas nem sempre está disponível. Interferências analíticas, outras moléculas esteroides e diferenças metodológicas entre laboratórios também afetam a leitura.
“A dosagem laboratorial deve ser feita com métodos adequados e revisada com cautela, dando preferência à espectrometria de massa, sempre contextualizada à clínica da paciente e às demais variáveis hormonais relevantes, e ainda levando em conta a questão da falta de uma referência universal adequada sobre qual o nível hormonal para cada fase do ciclo das mulheres”, afirma o endocrinologista.
Entre expectativas e realidade
O interesse crescente pela testosterona envolve desde queixas reais do climatério até uma cultura que transforma o envelhecimento em falha a ser corrigida. Para Soares Junior, trata-se de uma resposta medicalizada às pressões sociais. “Mas essa perspectiva carece de fundamentação científica robusta”, afirma. “A testosterona não reverte o envelhecimento, não aprimora o desempenho físico em mulheres saudáveis e seus benefícios estéticos são questionáveis frente aos significativos riscos androgênicos”.
Combater a desinformação é central para evitar frustrações e complicações. “Informação de qualidade, desde que adquirida de fontes adequadas, pode empoderar as pacientes, aumentar o engajamento nas decisões terapêuticas e promover o compartilhamento do poder decisório entre médico e paciente”, defende o ginecologista da Febrasgo.
A avaliação deve considerar fatores emocionais, relacionais e hábitos de vida. Estudos, como um piloto do Hospital das Clínicas da USP (2022), mostram que terapia cognitivo-comportamental em grupo pode melhorar o desejo sexual. Adoção de exercícios, ajuste do sono, alimentação adequada e investigação de doenças crônicas mal controladas também são medidas essenciais.
“A gente precisa, de fato, entender o que a pessoa está passando, quais são as queixas e qual o melhor tratamento para esse efeito cascata”, afirma Helena Hachul.

Segundo Duarte, opções não hormonais e medicamentos específicos também podem ser consideradas, sempre após avaliação global. “A escolha do caminho ideal deve levar em conta uma avaliação global da saúde, das causas subjacentes e das preferências da paciente, reservando a terapia hormonal apenas para casos selecionados e com critérios claros”, explica.
Para Hachul, o envelhecimento não deve ser visto como ameaça. “A gente perde um pouco da velocidade, mas a gente ganha em maturidade, ganha em experiência”, afirma. “É importante aceitar essas modificações, fazer o que é possível fazer, mas não viver em função de ser sempre mais jovem. Isso não é saudável”.
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