Entre anjos e demônios da Igreja, Francisco virou santo na mídia Brasil
Opositores do Papa, embora minoria, são articulados e contam com o apoio de parte da mídia conservadora global. A próxima eleição papal será espelho da fratura que hoje divide o catolicismo: Igreja dos muros ou das pontes, da doutrina ou da misericórdia
Por Pablo Reis.
Em março de 2013, o mundo católico parecia respirar aliviado. Saía de cena um teólogo cerebral, alemão, frio e discreto — Bento XVI — e entrava em campo um jesuíta argentino, de hábitos franciscanos, sorriso largo e apaixonado por futebol, e por Pelé. A imprensa brasileira, empolgada com a aparente leveza de Jorge Mario Bergoglio, não hesitou em canonizá-lo antes do tempo: o Papa Francisco era pop, progressista, humanista — e, segundo as manchetes, virtualmente infalível.
Dá para entender as razões. Ele combinava mais com o estilo brasileiro do que qualquer sisudo pontífice germânico, ou esforçado polonês na figura do Santo Padre. Passaria como um coroa transitando por Copacabana, com sotaque portenho. E o principal: era impulsionador das pautas progressistas, contra as pompas e mordomias do cargo, buscando colocar em evidência as demandas do que se chamava de Terceiro Mundo, e colocando o dedo em feridas abertas da Santa Madre Igreja. Uma receita fácil para se tornar um queridão.
Essa cobertura fez com que o público nacional imaginasse que esse pontificado só poderia ser unanimidade: como não amar alguém tão sensato, divertido, justo e de mente aberta como esse rompedor de paradigmas?
Só havia um problema: ele nunca foi um consenso. Nem dentro do Vaticano, nem fora dele.
A Igreja partida
Enquanto no Brasil a cobertura midiática abraçava o novo pontífice com entusiasmo, silenciando críticas e celebrando cada gesto simbólico — do uso de sapatos simples à recusa de habitar os luxuosos aposentos papais —, um fosso começava a se abrir no seio da própria Igreja. E essa rachadura não era cosmética. Era doutrinária. Era institucional. Era, no fundo, uma disputa feroz sobre o futuro da fé católica em um mundo em mudança.
E, indo mais além, a própria Cúria parecia fraturada em jogos de poder. Inclusive, inflamados pelo fato de Jorge Bergoglio conviver em seu papado com a sombra de Joseph Ratzinger, o alemão que partiu para o recolhimento, mas continuou inspirando conservadores dentro do colégio de Cardeais.

Conservadores em alerta: quem são os opositores de Francisco
A oposição ao Papa Francisco não é um boato subterrâneo — ela tem nome, rosto, microfone e púlpito. E, ao contrário da narrativa simplificada de um pontífice querido por todos, essa resistência parte justamente de dentro do alto clero. Cardeais, bispos e teólogos que viram em Francisco uma ameaça àquilo que chamam de “tradição”.
O cardeal Raymond Burke, dos Estados Unidos, talvez seja o rosto mais visível dessa ala conservadora. Em 2016, assinou uma carta de “dubia” — dúvidas — endereçada ao Papa, questionando as interpretações abertas do documento *Amoris Laetitia*, que sugeria a possibilidade de comunhão para divorciados recasados. Francisco ignorou publicamente a carta. Anos depois, retaliou: cortou o salário de Burke (6 mil euros) e o despejou de seu apartamento no Vaticano. Convenhamos, o imóvel tinha 400 m2 e a estimativa era de que a manutenção custava 80 mil euros aos cofres da Santa Sé.
Outros nomes engrossam o coro: Joseph Strickland, bispo texano demitido em 2023 por ataques públicos ao Papa; o cardeal alemão Gerhard Müller, que critica discretamente os rumos do pontificado; e o ex-núncio Carlo Maria Viganò, que em 2024 foi excomungado após declarar que Francisco era um “impostor” infiltrado.
Há ainda os movimentos organizados: a tradicionalista Opus Dei, enfraquecida por reformas administrativas (obrigando-o a reportar-se ao Dicastério para o Clero, o que gerou tensões com essa organização conservadora presente em mais de 60 países); mídias como LifeSiteNews e La Nuova Bussola Quotidiana, que alimentam a militância contra o Papa; e grupos radicais como os “sede-vacantistas”, que negam a legitimidade de Francisco como sucessor de Pedro.
Há que se fazer um parêntesis aos sede-vacantistas, que formam um grupo pequeno, mas barulhento, com o advento das redes sociais. Eles alegam que Bento XVI não estava doente, e foi pressionado a renunciar. Existe também um combinado de 19 sacerdotes e teólogos, que chegou a publicar uma carta em 2019 acusando Francisco de heresia, citando sua suposta leniência com aborto, homossexualidade e ecumenismo.

O que está em jogo: doutrina ou poder?
À primeira vista, as críticas parecem teológicas: queixas sobre a suposta ambiguidade doutrinária, o acolhimento de homossexuais, a defesa de migrantes, a ênfase na misericórdia em detrimento da ortodoxia. Francisco fala de uma “Igreja hospital de campanha”, e seus críticos veem nela uma barraca de relativismo.
Mas sob a superfície doutrinária pulsa outra disputa: uma batalha por poder.
Francisco não é apenas um líder espiritual. É um reformador institucional. Desde o início, mexeu em estruturas de poder na Cúria Romana, reformou o Banco do Vaticano, enfrentou o lobby financeiro clerical, substituiu cardeais influentes. Essa guinada gerou inimigos não por discordância teológica, mas por perda de influência.
Em sua autobiografia “Esperança”, lançada em janeiro, apenas três meses antes de sua morte, o Papa reconhece o confronto: “Não consegui desmantelar a cultura do tribunal”, escreve, em referência à burocracia vaticana. Também lamenta o “ativismo frenético” de opositores e critica a politização da fé.
Dois modelos de Igreja: qual prevalecerá no próximo conclave?
Francisco já moldou o colégio de cardeais que escolherá seu sucessor: dos 135 cardeais eleitores, 108 foram nomeados por ele (22 foram indicados por Bento XVI e 5 por João Paulo II). Isso poderia sugerir que o próximo Papa seguirá sua linha pastoral. Mas a realidade não é tão simples.
A Igreja Católica é uma instituição milenar acostumada a movimentos pendulares. A cada ciclo de abertura, frequentemente se segue um ciclo de retração. E mesmo entre os nomeados por Francisco há variações significativas — muitos seguem sua teologia da inclusão, mas outros foram escolhidos por critérios diplomáticos ou geográficos, sem alinhamento automático.
Além disso, os opositores do Papa, embora minoria, são articulados e contam com o apoio de parte da mídia conservadora global. A próxima eleição papal será, mais do que nunca, um espelho da fratura que hoje divide o catolicismo: uma Igreja dos muros ou das pontes, da doutrina ou da misericórdia, da hierarquia ou da sinodalidade.
A beatificação midiática e o silêncio sobre o conflito
O que chama atenção, sobretudo no Brasil, é como essa crise raramente é abordada de forma crítica. A figura de Francisco foi transformada em símbolo incontestável de modernidade e virtude, ignorando que sua liderança gerou uma das maiores polarizações internas da história recente da Igreja. O jornalismo que o aplaudiu por andar de metrô em Buenos Aires, hoje hesita em noticiar que foi chamado de herege por cardeais.
Essa blindagem revela algo maior: a dificuldade da imprensa em lidar com figuras que não cabem em categorias fáceis. Francisco é progressista, mas condena o aborto com firmeza. Defende os pobres, mas mantém posições conservadoras sobre temas sensíveis. Ele desafia a esquerda e a direita — e, por isso mesmo, incomoda ambos.
Um Papa que divide para tentar unir
No fim das contas, o Papa Francisco é um paradoxo ambulante. Um homem que, ao tentar curar a Igreja das suas exclusões e rigidezes, acabou expondo suas feridas mais profundas. Não é unanimidade — e talvez nunca quis ser. Suas reformas não agradam aos tradicionalistas, suas hesitações irritam os progressistas. Ele caminha numa corda bamba entre a tradição e a urgência do tempo presente.
Mas talvez seja esse o preço de tentar construir pontes em uma instituição feita de muralhas. E quando ele partir — como mortal que é —, a batalha que tentou mediar silenciosamente será travada em alto e bom som no conclave que virá.
Porque, afinal, por trás da batina branca, há um homem. E por trás de cada sucessor de Pedro, há um espelho da Igreja que o escolhe — e das feridas que tenta esconder.
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