A canarinho jamais será vermelha: uma camisa pesa mais que chuteira

Quando chamado de "manto sagrado", um uniforme deixa de ser tecido e vira totem. A camisa vermelha pode até ter fundamentos históricos e pretensões mercadológicas, mas o que falta nela é algo simples e essencial: alma. Não a do marketing. A do povo.

Por Pablo Reis.

Em 1950, o Brasil perdeu uma Copa do Mundo em casa, dentro do Maracanã, vestindo branco. O trauma foi tanto que o uniforme foi banido — e, fênix dos vestuários, destas cinzas nasceu o amarelo-canário, símbolo de uma redenção esportiva e, para muitos, da própria identidade nacional. Na final de 1958, o adversário Suécia usava amarelo. Os brasileiros foram obrigados por sorteio a escolher outra cor. O azul, associado à Nossa Senhora Aparecida, padroeira desta nação, parecia a mais acertada decisão. O primeiro título mundial, a cor vibrante, a superstição misturada com devoção mariana e fica fácil entender o motivo de “manto sagrado”. A conversa é muito mais do que falar sobre camisa, é muito mais do que estética.

Em 2025, no entanto, o país volta a discutir o que parece ser apenas uma peça de roupa: uma suposta camisa vermelha, oferecida pela fornecedora Nike, como alternativa ao tradicional azul. A proposta gerou reações explosivas e junto com ela uma grande interrogação: quando um uniforme deixa de ser tecido e vira totem?
O vermelho, cor ausente na bandeira nacional e no hino, foi sugerido como estratégia de marketing. Para um estagiário de publicidade e propaganda, não é difícil encontrar referências: conexão com o pau-brasil, sintonia com o neologismo pós-moderno “brasa”, tudo vira exercício de criatividade argumentativa. Uma leitura criativa, sim, mas não necessariamente legítima. Porque símbolos nacionais não se moldam como slogans publicitários. Eles se sedimentam — na história, na memória e na emoção coletiva. A camisa da Seleção não é apenas uniforme; é relicário.

Brasil De Vermelho Possível Nova Camisa Da Seleção Agita Redes Sociais

Uniforme da discórdia

Essa proposta, vazada antes de qualquer confirmação oficial, evidenciou algo maior: um país em crise com seus próprios símbolos. Antes de 2020, a camisa amarela foi cooptada como uniforme de manifestações políticas conservadoras. Em reação, setores progressistas começaram a evitar a peça como se estivesse contaminada por um vírus ideológico. Trocar o azul pelo vermelho seria, assim, uma tentativa de contrabalançar? Uma reinterpretação simbólica para “neutralizar” o monopólio identitário da direita?

Se for esse o caso, há um erro de rota — e de diagnóstico. Um erro que parte do pressuposto de que símbolos nacionais são tabuleiros ideológicos a serem conquistados, e não patrimônios a serem protegidos. A camisa amarela não pertence a um partido. Nem a azul. Nem o próprio verde-amarelo. Pertencem a todos. Ao povo. Ao país.

Recorrer a um novo uniforme como forma de enfrentamento cultural — ainda que velado — revela uma miopia simbólica. Substituir um símbolo em vez de reapropriá-lo é como fugir de casa porque o inimigo ocupou a sala. O caminho mais nobre não seria lutar para recuperar o que foi sequestrado?

Aqui vale um paralelo histórico: a suástica, símbolo milenar de boa sorte nas culturas budistas, hindus e indígenas americanas, foi apropriada e pervertida pelos nazistas no século XX. Uma inclinação de alguns graus e pronto: a maldade estava feita. E, ainda assim, em diversos lugares do Oriente, a suástica continua sendo usada em seu sentido original, com orgulho e reverência. Porque, para eles, um símbolo não se entrega. Se resgata.

Camisa Vermelha Selecao Brasileira Foice Martelo. Prompt de Matheus Carvalho

Tradição x modernidade: e vice-versa

O caso da camisa vermelha também escancara outra tensão: a batalha entre tradição e modernidade. A Jordan Brand, da Nike, é sinônimo de cultura urbana, juventude, inovação. O vermelho vibrante conecta-se ao mundo da NBA, ao hype sneakerhead, à estética do novo século. Mas será que o Brasil precisa reinventar sua identidade para ser global? Ou será justamente o enraizamento na tradição — na mística do amarelo, no azul de Nossa Senhora, no branco das origens e derrotas — que garante sua singularidade no cenário internacional?

E, já que uma santidade foi citada, um debate semelhante sobre conservadorismo e reformismo é a base para a cobertura internacional sobre o pontificado de Francisco e o novo conclave. Segmentos importantes da Igreja veem fragilização da liturgia quando alguns dogmas são revertidos. Imagine aí se batina, barrete e solidéu, das vestes cardinalícias, fossem mudadas para um vibrante… verde?

Tradição não é rigidez. É espinha dorsal. Ela se dobra, se adapta, mas não se dilui. Uma camisa pode até mudar de tom, mas não pode perder a voz. E a voz do torcedor, nesse episódio, foi clara: a rejeição quase unânime mostra que a memória coletiva ainda pulsa mais forte que qualquer plano de marketing.

Até mesmo comunicadores notadamente apontados como progressistas condenaram a possibilidade, como a declaração do jornalista Guga Chacra. 

 

Galvão Bueno, que é o maior nome da comunicação esportiva no planeta (em termos de talento e de alcance do público), também fez coro sobre esse absurdo. E chamou de “ofensa sem tamanho à história do futebol brasileiro”

Por fim, a questão ética: até onde pode ir o reformismo visual quando o que está em jogo é um símbolo afetivo de milhões? Para muitos, é um elo com a infância, com os pais, com os amigos, com domingos de Copa. É a bandeira que se veste. É o grito que se carrega no peito. Alterá-la sem amplo debate é um tipo de vilipêndio simbólico.

A camisa vermelha pode até ter fundamentos históricos e pretensões mercadológicas, mas o que falta nela é algo simples e essencial: alma. Não a do marketing. A do povo.

O estatuto da CBF, no capítulo III, artigo 13, inciso III, determina que os uniformes da Seleção Brasileira devem usar as cores da bandeira da entidade (azul, amarelo, verde e branco). O vermelho não está incluído, sendo permitido apenas em modelos comemorativos, desde que aprovados pela diretoria. Assim, para usar vermelho oficialmente, como na Copa de 2026, a CBF precisaria alterar o estatuto ou justificar o uso como evento especial.

E se há um caminho a seguir, talvez não seja o da troca, mas o da reconquista. Em vez de pintar o uniforme de outra cor para agradar novas audiências, por que não limpar o nome da camisa original — aquela que nos vestiu em cinco Copas, que nos emocionou em lágrimas e que, por um tempo, nos fez sentir que o Brasil era o melhor do mundo?

A camisa da Seleção não precisa de nova cor. Precisa de nova consciência.

Charge Pintor Camisa Amarela Vermelha Selecao. Prompt de Matheus Carvalho

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