CT do Bahia e pressão imobiliária ameaçam quilombo mais antigo do Brasil
Segundo líder quilombola, moradores do quilombo Quingoma e Ministério Público Federal não foram consultados sobre suposto acordo para construção de novo CT do Bahia
Por Matheus Caldas.
Quilombo mais antigo do Brasil, o Quingoma, situado em Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador, é espaço remanescente da resistência negra contra o processo de escravização promovido pelos colonizadores e donos de engenhos de terra do império. Agora, 456 anos depois, os quilombolas se veem, novamente, ameaçados: desta vez, pela especulação imobiliária e pela iminente construção do novo CT do Bahia.
Os quilombolas travam uma batalha burocrática contra o Estado para preservar a existência da área que ocupam desde 1569, ainda nos primeiros anos de ocupação portuguesa no Brasil. Enquanto isto, a especulação imobiliária avança sobre o Quingoma, com a construção do condomínio Joanes Parque. Em paralelo a isto, o Grupo City mira um terreno que, segundo os quilombolas, é de posse do quilombo, para o construção do novo CT do Bahia, cujo projeto é avaliado em R$ 200 milhões.
No final de abril, os quilombolas foram surpreendidos com a informação de que um acordo teria sido firmado para construção do novo centro de treinamentos do clube. Segundo a líder quilombola Rosemeire dos Santos, os moradores do Quingoma e o Ministério Público Federal (MPF) não foram consultados.
“Esse ano, novamente, a gente vem com essa surpresa de que o Bahia, de fato, está querendo implantar o CT no Quingoma. A gente não sabe qual seria a área, mas imaginamos que seria na Via Metropolitana. E esse medo vem nos assolando todos os dias”, afirma, em entrevista ao Aratu On.
Veja imagens do Quingoma
Na última semana, o CEO do Bahia, Raul Aguirre, afirmou que o novo centro de treinamento do clube será "o maior da América do Sul". "Está mais perto do que se imagina. É um tema extremamente complexo. Questões de infraestrutura, meio ambiente, regulamentação, tudo tem que ser trabalhado com bastante confidencialidade. Não estamos longe de anunciar detalhes, mas, estamos com o maior cuidado, porque há muitas variáveis que têm que ser perfeitamente equacionadas", anunciou, em em entrevista institucional publicada no canal oficial do Bahia no YouTube.
O novo equipamento será construído para substituir o CT Evaristo de Macêdo, situado em Dias d'Ávila, também na região metropolitana. A avaliação do Grupo City é que a logística para treinamentos neste CT é inviável para o time profissional. Com isso, a tendência é que o espaço seja cedido para divisões de base e futebol feminino.
O Bahia não se manifestou oficialmente sobre o tema.
Para Rosemeire, o Quingoma é alvo de investidas imobiliárias que podem causar danos ambientais graves. “Como vai ser essas questões ambientais e climáticas, que vêm sendo discutidas sem os povos que protegem o meio ambiente? Nós, remanescentes de quilombolas, deixaremos de existir para dar lugar a todas essas especulações empresariais? Interessa a quem?”, questiona. “A gente nunca é respeitado. Só queremos proteger o que os nossos, que vieram nessa caminhada tão sofrida, queriam proteger”, acrescenta.
Em abril de 2024, o Ministério Público Federal (MPF) emitiu recomendação conjunta com as defensorias públicas da União (DPU) e do Estado (DPE), no intuito de solicitar que o Bahia se abstivesse de construir o CT no local, e que a empresa MAC Empreendimentos suspendesse a comercialização de apartamentos do condomínio Joanes Parque.
O documento recomendava, ainda, que o governo do estado e a prefeitura de Lauro de Freitas adotassem medidas necessárias para não autorizar licenças, projetos e obras para impactar o Quingoma. Em 2025, contudo, as obras do Joanes Parque seguem.
Certificado pela Fundação Palmares desde 2013, os líderes do Quingoma tentam, desde 2005, concluir o processo de titulação de terra pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Este processo, de responsabilidade do governo federal, é a etapa final de reconhecimento de uma comunidade quilombola e, além de garantir o usufruto exclusivo das terras, permite a reprodução do modo de vida das populações remanescentes de quilombos.
Para o MPF, apesar de o processo de titulação estar em curso, “a comunidade quilombola precisa de medidas protetivas contra toda e qualquer investida, seja de quem for”.
Em nota enviada à reportagem, o Incra indica não ter sido comunicado sobre a possível construção do CT do Bahia no local.
A autarquia federal aponta, ainda, que a titulação se trata de “processo complexo, que demanda estudos técnicos e análises detalhadas sobre a área com o envolvimento da comunidade”. Atualmente, a tramitação encontra-se na fase de elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que, segundo o Incra, é uma etapa “fundamental do processo de regularização fundiária, que delimita o território”.
Enquanto o processo tramita, os órgãos federais orientam que não sejam construídos empreendimentos em áreas quilombolas. Para Rosemeire, o avanço imobiliário na região é um “ataque” aos moradores. “É assim que diz a lei. Mas, infelizmente, somos atacados todos os dias pelos empreendimentos, grileiros, pessoas que vêm colocar empresas aqui dentro, e a gente já não sabe mais o que fazer, porque isso vem trazendo um sério risco para a gente, enquanto quilombola”, desabafa.
O MPF não respondeu aos questionamentos feitos pela reportagem.
Impasses sobre tamanho do território do Quingoma
Os quilombolas sustentam ter uma área de 1.284 hectares, fruto de pesquisas realizadas durante séculos pelos anciãos do quilombo. No entanto, um contralaudo realizado pela prefeitura de Lauro de Freitas sugere uma área de 284 hectares, o que corresponde a um quinto do tamanho do território pleiteado pela comunidade. O documento embasou uma decisão da 14ª Vara Federal, em vigor no momento.
Diante disto, a MAC Empreendimentos sustenta que o terreno em que acontecem as obras está fora da poligonal do território quilombola. “Todas as etapas deste empreendimento têm sido conduzidas em estrito cumprimento com a legislação vigente e em total acordo com as exigências dos órgãos competentes”, diz trecho do comunicado da construtora, publicado no site oficial de vendas do Joanes Parque (leia aqui).
E a empresa assegura que possui os licenciamentos necessários para desenvolvimento do loteamento, apesar de o MPF, a DPU e a DPE terem recomendado que a prefeitura de Lauro de Freitas não fornecesse as autorizações.
De acordo com Rosemeire, os quilombolas nunca obtiveram acesso ao laudo. “A gente se pergunta quem fez esse contralaudo. A gente descobre que houve esse contralaudo, ao qual não temos posse para ter certeza disso. Mas é o que a juíza alega: que está fora desta poligonal”, conta.
Diante da situação, os quilombolas tentam uma reunião com a prefeita Débora Régis (União), empossada neste ano e opositora à administração da gestora anterior, Moema Gramacho. “A gente vem tentando essa agenda para fazermos essa provocação e ver qual o posicionamento dela perante o Quingoma, levando em consideração que, nas campanhas, ela dizia que ajudaria a resolver o problema do empreendimento Joanes Parque”, pontua.
Procurada, a prefeitura de Lauro de Freitas se limitou a dizer que "não foi realizada nenhuma emissão de licença, autorização prévia ou consulta no território do Quingoma, sobre um Centro de Treinamento do Esporte Clube Bahia". A resposta foi emitida pela a Secretaria Municipal de Planejamento, Desenvolvimento Urbano Sustentável e Ordenamento do Uso do Solo (Sedur).
Quilombolas apontam racismo e descaso do Poder Público
Moradora do Quingoma, Raquel Pereira conta que os quilombolas são alvos de racismo quando vão às ruas de Lauro de Freitas. Na visão dela, o Estado possui culpa pelos ataques sofridos. “Para mim, os poderes públicos que dão o direito de as pessoas terem esse racismo com a gente, esse preconceito que a gente vive aqui dentro do Quingoma”, lamenta. “Há jovens aqui que foram botar currículo, mas, quando dizem que são do Quigoma, dizem 'ah, não'”, relata.
Raquel é mãe de Rejane Rodrigues, uma das líderes do quilombo. Ela precisou deixar o Quingoma em 2024, após receber ameaças, e foi incluída num programa de proteção a defensores dos direitos humanos.
Morador do Quingoma há nove anos, o pedreiro Valdenilson dos Santos, o “Seu Val”, reitera as reclamações de Raquel. “Fui num local e disseram que meu pé estava sujo porque moro na Quingoma. Aí falei: 'Quem mora aqui, também tem pé sujo'. Eu cortei logo”, conta.
Rosemeire enxerga haver uma tentativa de “extermínio do povo preto e das comunidades tradicionais”. “É, justamente, o que move esse povo que tem poder aquisitivo. Eu digo que são colonizadores, que mascaram seu modo de agir, mas agem exatamente como foi lá em 1500”, conclui.
A reportagem do Aratu On percorreu trechos do centro do quilombo Quingoma com Rosemeire, Raquel e Seu Val. É possível observar com clareza os impactos promovidos pela expansão urbana na comunidade.
Em um dos pontos, um córrego se tornou, em cinco anos, uma lagoa, que circunda a vila onde residem parte dos quilombolas. De um local em que circulavam pessoas com água no calcanhar, nasceu um lago, com mais de 10 metros de profundidade.
As mudanças nas características da área, alegam os moradores, aconteceram após o represamento da água feita pela construtora MRV, em razão das obras de um condomínio nas imediações do Quingoma.
“Os poderes públicos acham que a gente manda na natureza. O homem não manda na natureza. A natureza manda no ser humano. E é isso que eles estão fazendo conosco aqui: é mata, é desmatamento”, constata Raquel.
Para Seu Val, o lago configura o “fracasso” na luta pela preservação do meio ambiente. “A água tomou tudo. Aqui, no mínimo, a água matou umas 200 canas. Era cana grande. Acabou com tudo. Eu perdi uma horta inteira. Ficou tudo debaixo d’água”, confessa.
Rosemeire relata que, com os desmatamentos constantes, animais silvestres invadem as residências dos moradores. Já foram encontradas jiboias, tamanduás-bandeira e jacarés.
Os quilombolas estimam que mais de quatro hectares de terra foram devastados apenas pelo Joanes Parque. Além disto, houve soterramento de trechos do Rio Cabuçu. “Fica mais do que claro que é uma área de Mata Atlântica que deveria ser preservada”, crava Rosemeire.
História do Quingoma
Fundado por africanos escravizados que fugiram de engenhos e fazendas da antiga freguesia de Santo Amaro de Ipitanga, ainda no século XVI, o território se tornou símbolo de resistência negra, com forte presença de tradições culturais e religiosas de matriz africana.
A origem do nome remonta à palavra “Kibongo” ou “Kimbundu”, dialetos de origem banto, fazendo referência às comunidades organizadas que se formavam em áreas de refúgio. A região de Quingoma foi inicialmente habitada pelos Tupinambás, antes da chegada dos portugueses, e posteriormente por africanos que, após fugas em massa, se instalaram nas matas do entorno e criaram uma estrutura social própria. Documentos históricos apontam que, em 1569, a Coroa Portuguesa já fazia referência à localidade.
O Quingoma abriga, atualmente, cerca de 3.500 pessoas, distribuídas em aproximadamente 630 famílias, segundo o Censo do IBGE. O território inclui nascentes, matas nativas, terreiros e sítios arqueológicos, além do Cemitério dos Pretos Novos, um importante vestígio da história da escravidão na Bahia.
A vida no quilombo gira em torno de práticas tradicionais e projetos de resistência cultural, educacional e ambiental. A agricultura familiar é uma das principais atividades desenvolvidas pelas famílias, com cultivo de mandioca, hortaliças, frutas e plantas medicinais. Parte da produção é usada para consumo próprio, e o excedente é comercializado em feiras da região.
Quingoma também mantém viva a religiosidade afro-brasileira, com a presença de terreiros de candomblé como o Ilê Axé Igbalé Omin, que também atua como espaço de formação espiritual, cultural e política. Oficinas de capoeira, percussão, artesanato, teatro e danças afro fazem parte da rotina, voltadas especialmente para a juventude da comunidade.
Além das atividades culturais e agrícolas, o território também abriga iniciativas de educação ambiental e de ecoturismo comunitário. Trilhas são conduzidas por moradores, que apresentam aos visitantes a biodiversidade local e contam a história do quilombo, reforçando a importância da preservação do território frente à crescente especulação imobiliária da região.
Em março de 2023, o quilombo se tornou o primeiro lugar no Brasil a receber a certificação de território iorubá, honraria concedida por Ooni Ilê Ifé, o rei de Ifé, cidade na Nigéria, durante visita ao Quingoma.
Na ocasião, o rei declarou: "Vocês são parte do meu sangue e eu tenho em meu coração felicidade em estar com vocês. Esse momento é um milagre dos nossos ancestrais, aqui neste lugar onde nosso povo se escondeu e resistiu até o dia de hoje".
Siga a gente no Insta, Facebook, Bluesky e X. Envie denúncia ou sugestão de pauta para (71) 99940 – 7440 (WhatsApp).