ENTREVISTA: ?As cotas precisam ser fiscalizadas?, diz promotora
ENTREVISTA: ?As cotas precisam ser fiscalizadas?, diz promotora
No último dia 14 de março, a promotora pública Lívia Sant?Anna Vaz, 35 anos, expediu recomendação para que instituições públicas baianas adotem as características fenotípicas, relacionadas ao grupo étnico-racial negro, como critério para validação de candidatos cotas raciais para concursos públicos.
Na prática, a medida fará com que os responsáveis pelo processo de seleção criem comissões, que terão de fiscalizar se os candidatos que se autodeclararam negros ou pardos pertencem, de fato, a estes grupos raciais. Para entender melhor este processo, o Aratu Online esteve na sede do Ministério Público do Estado da Bahia, no CAB, onde conversou com a promotora.
Atuando na função há 11 anos, Lívia integra o Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação (Gedhis), que trabalha com projetos voltados ao combate à discriminação racial e intolerância religiosa. Confira a entrevista:
O que motivou o pedido de adoção de avaliação fenotípica para concursos organizados por instituições públicas?
Nós temos representações no Gedhis, dando conta de que os concursos municipais e estaduais não estão respeitando esta questão das cotas. Não está havendo uma fiscalização do sistema de cotas, ou seja, o concurso prevê as cotas para negros, muitas vezes prevê até a instituição de uma comissão de verificação da autodeclaração, mas essa comissão não tem uma atuação prevista nos editais. Então, ela está sendo só ?pro forma?.
Essas representações são feitas por membros da sociedade civil?
Sim, candidatos de concursos, movimentos sociais. No estado da Bahia, nós temos o Estatuto da Igualdade Racial Estadual, que é a lei 13.183 de 2014, que prevê 30% de vagas para negros nos concursos públicos, além de um decreto municipal que replica o estatuto neste mesmo sentido. A partir daí, começaram a surgir os concursos prevendo as cotas raciais, e estas já foram declaradas constitucionais pelo STF (Supremo Tribunal Federal). Então, considerada essa constitucionalidade e legitimidade, reconhecida pelo STF, que é o órgão maior do poder Judiciário, nós temos que aplicar as cotas com a sua real finalidade. As cotas são uma modalidade de ação afirmativa. O que é isso? É um mecanismo de promoção da igualdade. Na esfera racial, ela quer trazer igual acesso aos direitos fundamentais à população negra brasileira.
No Brasil, nós temos um tipo de preconceito, dito preconceito de marca, que é aquele que atinge as pessoas em função das suas características fenotípicas, das suas marcas, dos seus traços faciais, da cor da sua pele, da textura dos seus cabelos e não de origem. Aqui, a exclusão a certos direitos e falta de representatividade da população negra em determinados cargos do poder Judiciário, do Legislativo, do Executivo, em universidades públicas, se dá justamente por conta das características físicas das pessoas e não da origem. Então pouco importa se eu tenho um bisavô negro. A questão é: Eu sou beneficiário das cotas? E por que não sou? Quem são os beneficiários das cotas? Aqueles que sofrem diretamente com o racismo e a discriminação racial. Portanto, são aqueles que se apresentam e são reconhecidos socialmente como negros, que segundo o IBGE, são os pretos e os pardos.
Por se tratar de uma recomendação, ela precisa necessariamente ser adotada ou fica ao critério das instituições?
O Ministério Público, na sua atuação extrajudicial, pode expedir recomendações, na esfera de suas atribuições. Essa recomendação não é do juízo particular do promotor de Justiça. Especialmente esta se fundamenta na legislação brasileira, do estado da Bahia e do município de Salvador. Se fundamenta na jurisprudência e também na doutrina. Há fundamentos para se recomendar a adoção. Agora, ela é um instrumento extrajudicial. O que quer dizer isso? Que caso as sugestões não sejam acatadas, pode haver o ajuizamento de uma ação pública.
É uma espécie de primeiro passo?
Exatamente. A recomendação contém informações importantes para as instituições públicas que ainda não abriram seus editais, que ainda não realizaram os concursos por cotas. Porque eles já vão estar orientados aqui pela norma, pela doutrina e pela jurisprudência, sobre como devem proceder. Os que já estão abertos não, mas os que ainda não abriram têm essa possibilidade de orientação. Por isso, a gente faz uma recomendação geral e prévia a uma ação mais contundente, que seria a judicialização de uma medida.
Houve negociação com entidades ligadas ao movimento negro e outros representantes da sociedade civil?
Houve. Assim como a administração pública tem o poder dever, aliás, eu diria até dever poder, porque o dever vem primeiro, de fiscalizar esse sistema de cotas nos concursos, o Ministério Público também tem o dever de fiscalizar essa fiscalização ou omissão de fiscalização pela administração pública. Essa tem sido uma preocupação do órgão, inclusive do Conselho Nacional do Ministério Público, que possui um órgão de enfrentamento ao racismo e que vem debatendo, desde o ano passado, a questão das fraudes no sistema de cotas. Então, no dia 03 de novembro de 2015, houve uma audiência pública no Conselho Nacional do Ministério Público, com a presença de diversos representantes dos movimentos sociais, na qual se debateu exatamente essa questão e a necessidade de verificação das características fenotípicas dos candidatos.
Existem números na Bahia relacionados a essas fraudes?
Ainda não, porque é algo muito recente aqui. Nós temos várias situações ocorrendo em todo o Brasil. O Ministério Público está atuando, inclusive esta recomendação da Bahia está sendo replicada por Ministérios Públicos de outros estados. O que acontece na verdade é que o sistema de cotas, no Brasil, adota preferencialmente a autodeclaração como forma de identidade racial do candidato. Mas o próprio STF já decidiu que o sistema misto também é possível, ou seja, a autodeclaração pode vir acompanhada de uma forma de verificação. E esses editais preveem que a autodeclaração falsa pode resultar na exclusão do candidato. Então, se o edital prevê isso e a administração pública não fiscaliza, ela está se omitindo do seu dever de fiscalizar.
Teme que haja reações negativas à recomendação?
Não, porque nós tivemos a presença de diversos estudiosos do assunto. O IPEA estava presente, o IBGE, responsável pela classificação racial no Brasil, estava presente, estudiosos do direito administrativo, direito constitucional, os movimentos sociais. Então, houve uma legitimidade muito grande nessa audiência pública.
Em um país tão miscigenado como o Brasil, existe o risco de um processo de avaliação deste tipo gerar polêmica? É possível que se cometa alguma injustiça? Se sim, como agir para minimizá-las?
Por isso a necessidade de comissões de verificação. Em relação aos pretos, não há muitas dúvidas acerca das características relacionadas aos grupos étnico-raciais negros, mas com relação aos pardos, a gente tem uma linha tênue aí. Seriam, na verdade, os beneficiários das cotas mais sujeitos a uma verificação pela comissão. Essa comissão deve ser composta, além de representantes dos poderes públicos, por representantes dos movimentos sociais relacionados ao combate ao racismo, para que haja um equilíbrio nesta decisão final. Não é que a autodeclaração do candidato não seja válida, ela é o primeiro critério de classificação do candidato no sistema de cotas, mas ela não é absoluta. Pode ser inverídica, como tenho verificado na prática em alguns procedimentos.
A partir daí, essa comissão vai unir a autodeclaração à verificação, para validá-la. Na apuração, a gente exige fotos dos candidatos cotistas, e eu tenho visto pessoas com ascendência oriental se declarando negras, loiros dos olhos verdes…acredito até que possam ter alguma ascendência, todos nós no Brasil temos, mas a questão não é essa, mas que o racismo no Brasil não afeta essas pessoas. A ação afirmativa é voltada diretamente para essas pessoas que sofrem diretamente com o racismo.
Com relação ao Gedhis, o grupo existe desde quando? Quantos promotores fazem parte dele?
O Gedhis tem uma parte que atua na promoção dos direitos humanos e tem uma promotoria específica de combate ao racismo. Esta promotoria completou no último dia 22 de março, 19 anos. Foi a primeira promotoria do Brasil, no âmbito dos Ministérios Públicos estaduais, de combate ao racismo. Na capital, há dois promotores. Um mais voltado para a questão dos direitos humanos e eu, atuando no combate ao racismo e a intolerância religiosa, que não deixa de ser uma manifestação do racismo. E no interior, todos os promotores que têm atribuições na área de cidadania atuam também neste mesmo setor.
As decisões tomadas pelo Gedhis são fruto de discussão coletiva ou individual?
Decisões como essa (da avaliação fenotípica), que tem um impacto social grande, nós procuramos fazer uma ampla discussão. Mas a decisão por si só, a atuação do promotor na apuração daquele procedimento, na expedição da recomendação, é individual de acordo com a sua independência funcional.
Qual a finalidade central do grupo?
A gente trabalha no combate a discriminação racial especialmente. Há outras formas de discriminação, mas a promotoria historicamente, desde que foi criada, centrou-se mais neste tópico, o que se justifica em um estado como a Bahia, além da intolerância religiosa.
Quais os próximos passos? Existem novas ações idealizadas pelo Gedhis?
São vários, vou pontuar alguns. Em relação ao sistema de cotas, o Conselho Nacional do Ministério Público continua discutindo e pretende realmente replicar essa atuação em todo o país, com o dever dos Ministérios Públicos de fiscalizar essa omissão da administração pública. Além disso, o nosso Estatuto da Igualdade Racial prevê a criação de delegacias especializadas de atendimento no setor de combate ao racismo e intolerância religiosa. Mas isso segue só na lei. A rede de combate ao racismo no estado da Bahia, da qual nós fazemos parte, está fazendo reuniões periódicas para regulamentar esse artigo e instituir uma delegacia na qual os agentes de polícia, os delegados, sejam preparados e conhecedores da causa.
Na questão da intolerância religiosa, nós temos percebido um aumento dos registros. Em 2014 foram 15, em 2015 foram 13 e este ano já foram 15. Então, tem aumentado. A gente tem a intenção de fazer seminários, cursos com promotores de Justiça, porque é uma área difícil, cujos problemas têm vindo à tona agora, principalmente direcionadas aos terreiros de candomblé, às religiões afro-brasileiras ou de matriz africana. Esses templos religiosos sempre viveram na clandestinidade, até porque eram perseguidos pelos poderes públicos e ainda são em boa parte. Por conta disso, eles não registravam, isso não aparecia.
O que eu vejo na minha atuação no dia a dia é que elas sequer são consideradas religião. Tudo é visto mais como um folclore, existe uma folclorização das religiões de matriz africana. Porque se é religião, deveria ter o mesmo direito das outras. Por exemplo, imunidade tributária, os terreiros não têm, porque não são cadastrados. Portanto essas casas, esses imóveis, não têm isenção do IPTU. Salvador, inclusive, já está trabalhando nisso, para garantir essa imunidade aos terreiros de candomblé.
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Em contato com o Aratu Online, o vereador por Salvador e militante do movimento negro, Sílvio Humberto, aprovou a novidade. “Parabenizo o Ministério Público por esta iniciativa”. De acordo com ele, é preciso criar mecanismos que impeçam a fraude de sistemas de reparação social como as cotas. “As pessoas ficam testando o sistema, em uma tentativa de encontrar brechas. Estamos falando de uma política séria, histórica. Temos que fazer com que a lei, que já está no papel, seja cumprida”.
Humberto pontuou ainda que fechar os olhos para este tipo de questão é promover uma meia igualdade. “Queremos igualdade por inteiro. É como disse Agostinho Neto, o primeiro presidente de Angola: Não basta que seja pura e justa a nossa causa, é necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós.”