ÀS ARMAS, PORTUGAL: Cristiano Ronaldo e a fundamental ausência de um ídolo redentor
ÀS ARMAS, PORTUGAL: Cristiano Ronaldo e a fundamental ausência de um ídolo redentor
Contundido no segundo jogo do Mundial do Chile, Pelé não participou das outras quatro partidas daquela Copa e, ainda assim, sagrou-se campeão. Não é menos campeão por isso. No entanto, na prateleira onde descansam suas três réplicas da Jules Rimet, sem dúvidas, a de 1962 é a que menos reluz.
Léguas distante do ?Maior de Todos?, a despeito do pouco tempo que permaneceu em campo durante a decisão da Euro, Cristiano Ronaldo, ao contrário do Rei, fez de sua ausência a maior de suas participações no futebol.
A imagem do herói de tênis, calção, agasalho luso e uma atadura no joelho esquerdo ? indicando o ferimento que o levou às lágrimas e a maca dos enfermos ? é forte o suficiente para ressignificar uma crença, há muito, arraigada no povo português.
Nossos colonizadores possuem como traço atávico, herdado até por nós, brasileiros, o mito do sebastianismo. É o olhar perdido no horizonte à espera do ídolo redentor.
No século XVI, enquanto comandava uma das campanhas de guerra no norte da África, o monarca português Dom Sebastião desapareceu. Entre a deserção e o ferimento de morte transcenderam versões da construção de uma fábula. O mito do rei extraviado que, messiânico, a qualquer momento reapareceria em seu robusto alazão para redimir seu povo das derrota tidas como líquidas e certas.
Em vão, os portugueses esperaram anos a fio pelo desabrochar do herói. Antônio Conselheiro, na comunidade de Canudos, no início da República brasileira, ainda citava Dom Sebastião, ao lado de Cristo, como uma das figuras que salvaria os sertanejos de todos os males ali impingidos por anos de seca e descaso da federação.
Com sete minutos de jogo, contra a França, Cristiano Ronaldo foi atropelado por um atabalhoado Payet. O árbitro sequer indicou falta. Caído, CR7 viu um inseto beijar seu rosto enquanto ensaiava as primeiras lágrimas. Resistiu até os 24 do primeiro tempo, até ser vencido pela dor e desaparecer no campo de batalha do Stade de France.
Os portugueses, mais uma vez, estavam ali abandonados ao próprio azar. Naufrágos de uma caravela sem capitão destinada ao degredo. Subvertendo o hino do país, durante os 90 minutos do tempo regulamentar, os lusos trocaram ?as armas? pelos escudos. Optaram por se defender à espera do primeiro sinal de Dom Sebastião, cujo credo era o único indicativo para resistir.
No início da prorrogação, contrariando prognósticos, ele surge. Altivo, recuperado dos espamos da dor, confiante. Abraça os companheiros, transmite esperança. O agasalho de mangas compridas esconde o lugar marcado para ostentar a braçadeira.
Mas o herói não está ali para entrar em campo.
Não há ninguém que possa nos salvar que não nós mesmos. O herói inspira. Mostra ser possível. Mas são apenas aqueles que lá estão, independentemente de quaisquer circunstâncias, que podem fazer algo. E o gol pode ser de qualquer um. Que bom que seja de um improvável reserva, nascido em Guiné-Bissau, crescido em um orfanato, com nome de craque brasileiro (Eder) e que calça uma luva branca em sinal de paz.
Quando Brecth cunhou a famosa frase que ?infeliz era a nação que precisa de heróis?, sem dúvidas, tinha em perspectiva o drama português à espera da salvação.
CR7 voltou não para jogar. Mostrou para dizer, apenas, que seria possível.