Os órgãos são colocados no abdômen durante a necropsia? Peritos explicam processo que viralizou nas redes
Para esclarecer essa questão, o Aratu On conversou com dois médicos legistas, ambos professores de universidades baianas e com larga experiência no Instituto Médico Legal (IML)
"Cérebro no estômago? Que história é essa de que os órgãos são colocados na região abdominal de um corpo durante a necropsia?"
Um vídeo que tem ganhado cada vez mais visualizações, curtidas e comentários no TikTok chama a atenção. Nele, uma jovem diz “trabalhar com a morte” e afirma que, durante uma necropsia, os órgãos de uma pessoa não são devolvidos aos locais de origem, por perderem sua consistência. Assim, eles seriam colocados no abdômen. Será?
Para esclarecer essa questão, o Aratu On conversou com dois médicos legistas, ambos professores de universidades baianas e com larga experiência no Instituto Médico Legal (IML). De antemão, eles disseram que essa não é a orientação da literatura médica, e que o ideal é, sim, recolocar os órgãos em seus devidos lugares (até para uma futura exumação, se necessário).
“A gente faz a necropsia, examina os órgãos, depois tem que repor no mesmo local. E por que isso? O artigo 182 do Código de Processo Penal diz que o juiz não está preso ao laudo. Ele pode aceitá-lo ou rejeitá-lo, em todo ou em parte, e pedir uma nova perícia, que é o que a gente chama de ‘exumação’”, explica Raul Barreto Filho, médico legista aposentado, ex-diretor geral da Polícia Técnica, que atuou por 40 anos no IML e é atual professor de Medicina Legal da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Ele lembra que a exumação não é algo incomum e já ocorreu em casos de grande repercussão, como o da morte de Paulo César (PC) Farias, que foi chefe de campanha do ex-presidente Fernando Collor. À época, havia dúvidas quanto ao laudo da perícia.
“A qualquer momento, pode haver necessidade de uma nova perícia e, por isso, os órgãos devem continuar nos seus lugares”, reforça, pontuando que eles podem ser retirados em casos de suspeita de envenenamento, por exemplo. “Aí pode tirar o estômago, parte do pulmão… e mandar para o laboratório, mas é preciso colocar no relatório que esse material foi retirado para o exame toxicológico”, completa.
O grande contratempo da exumação, todavia, é a putrefação. “Quanto mais tempo passa, mais dados se perdem”, diz Barreto.
Tipos de necropsia
A médica legista Juliana Freitas, também professora e perita do IML, explica que a necropsia foi muito importante para o desenvolvimento da medicina e conhecimento e entendimento das doenças, pois, antigamente, não existiam exames como ressonância magnética e tomografia computadorizada, por exemplo.
Hoje, existem dois tipos de necropsia, a clínica, por meio do Serviço de Verificação de Óbito (SVO) e a para casos de violência (homicídio, suicídio e acidente). Ambas são realizadas no IML, em Salvador, apesar de serem serviços independentes.
A profissional destaca que a necropsia clínica continua sendo uma ferramenta fundamental, porque mesmo com os recursos tecnológicos atuais, há casos de óbitos que ocorrem antes da elucidação do diagnóstico. “Às vezes, uma pessoa hígida (saudável), que nunca teve um problema de saúde, de repente tem uma morte súbita, em casa. Então, o patologista, que foi treinado para estudar os órgãos, faz isso e, a partir dos dados, pode fazer uma amostragem deles para um estudo microscópico”, exemplificou Juliana.
Ela reforça que existe um método, no qual o corpo é aberto e o médico patologista examina aquele corpo. Os órgãos são retirados, pesados e examinados um a um, inclusive o encéfalo (que engloba o cérebro), “porque tudo isso é usado como parâmetro para dizer a causa da morte”, continua a legista. Depois, são devolvidos.
“Não é possível devolvê-los todos em um mesmo lugar. Tem que dissecar, retirar os vasos, e a gente tem um arcabouço de tecidos que faz a fixação dos órgãos nos locais corretos. Eles só não ficam do jeito anatômico ‘normal’, mas a técnica preconiza que a gente devolva o encéfalo para a caixa craniana, e os órgãos torácicos e abdominais para a cavidade toracoabdominal. Isso é o que está escrito nos livros. Não sei se pode mudar de um serviço para o outro, mas a gente deve seguir os protocolos e as técnicas”, reitera.
Ainda de acordo com a médica e professora, um patologista consegue elucidar boa parte do problema na necropsia, apenas estudando os órgãos, mas também pode acessá-los posteriormente, na microscopia.
SVO
Por legislação federal, existe hoje o chamado Serviço de Verificação de Óbito (SVO), dedicado a investigar causas de mortes não violentas por meio de necropsia. Ele está ligado à Secretaria da Saúde do Estado (Sesab). Toda capital brasileira deve ter um SVO, assim como toda cidade com mais de um milhão de habitantes. A Bahia, segundo Dra. Juliana Freitas, está se adequando para tal.
[caption id="attachment_209797" align="alignnone" width="750"] SVO em Salvador | Foto: divulgação[/caption]
Em Salvador, o SVO fica no mesmo prédio do IML, no bairro do Garcia, pois é uma cooperação entre as secretarias de Saúde e da Segurança Pública (SSP-BA).
Morte violenta
Também por lei, pelo Código de Processo Penal, as mortes por violência - sejam elas em decorrência de acidente, crime, envenenamento, entre outras - devem ser submetidas a um exame de necropsia por um perito médico legal. “É uma necropsia mais direcionada, e em alguns casos os órgãos nem são retirados”, pontua a médica, explicando que tecnologias como scanner permitem identificar projéteis antes de abrir o corpo. “Muitas vezes, a gente precisa desse projétil para chegar à arma do crime”, completa.
Passo a passo
Tudo começa com a identificação do corpo. Mesmo que chegue identificado, é necessária a confirmação - do Instituto de Identificação Pedro Mello, na capital baiana -, seja por dactiloscopia (impressões digitais), odontologia legal ou até mesmo teste de DNA.
Depois é feito um exame externo, a fim de identificar lesões e sinais de “certeza” de morte, rigidez cadavérica, desidratratação, temperatura corporal, entre outros, o que vai para o laudo pericial. Em seguida é realizado exame interno, para ver toda a cavidade craniana, torácica, abdominal e, se necessário, a cavidade raquidiana (coluna).
"Com os dados coletados, fazemos o 'raciocínio lógico', e é possível pedir exames complementares, a exemplo dos toxicológicos. Se houver suspeita de abuso sexual, deve-se coletar material vaginal e/ou anal, mandar para o laboratório e, às vezes, até a anatomia patológica, para saber se a lesão foi feita em vida ou posterior à morte", explica Raul.
Chegando à conclusão, o médico legista dá as respostas aos "quesitos sociais", algo elaborado antes pela Justiça em toda perícia realizada. A autoridade também pode acrescentar mais quesitos durante ou após o procedimento, e o perito pode, ainda, ser convocado para prestar esclarecimentos no momento do júri.
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