Bahia na Segunda Guerra Mundial: ex-combatentes relembram batalhas na Itália
Aos 102 anos, Ricarte da Costa Pestana, que era da artilharia, ainda lembra em detalhes o que passou na Itália entre os anos de 1944 e 1945: ‘Dormi em cima de morto! Mas, não tinha medo’
Ricarte da Costa Pestana tinha 22 anos e trabalhava na fazenda do pai, em Nazaré, no Recôncavo Baiano, quando foi convocado para lutar pelo Brasil na Segunda Guerra Mundial. Em 1942, após a Alemanha bombardear e afundar 35 navios brasileiros com submarinos, o presidente Getúlio Vargas declarou guerra ao país nazista e às outras potências do Eixo, a Itália e o Japão.
Segundo o professor Raul Barreto Neto, mestre em História Regional e Local e especialista em História Militar, uma sequência de ataques na costa da Bahia e de Sergipe foram a “gota d’água” para a declaração de guerra do Brasil. “O país virou alvo de um verdadeiro cerco de submarinos alemães e italianos, entre 1941 e 1943. Ao todo, 35 navios brasileiros foram atacados. Trinta e três deles afundaram, e cerca de 1074 pessoas morreram, entre tripulantes e passageiros. A pior dessas tragédias aconteceu na costa de Sergipe, na divisa com a Bahia, com o navio Baependi. Cerca de 270 pessoas morreram”, detalha ele, que também ministra o curso “A Bahia na Segunda Guerra Mundial”, realizado pelo Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB).
Um ano depois, em 1943, nasceu a Força Expedicionária Brasileira (FEB), criada exclusivamente para a guerra. Em 1944, Ricarte e mais 25.833 homens e mulheres, entre eles, cerca de 700 baianos, entraram em um navio no porto do Rio de Janeiro e desembarcaram na Itália. No total, 471 deles não voltaram.
Hoje, aos 102 anos de idade, ele diz ainda se lembrar de tudo: do dia da convocação, de cada batalha que enfrentou, do medo, do sofrimento dos civis italianos, da fome, dos amigos mortos e, finalmente, da volta para casa. “Passamos oito meses em Salvador tomando instruções. De Salvador, fomos para São Paulo, até a cidade de Caçapava, e lá ficamos acampados por 29 dias, recebendo mais instruções. De Caçapava, voltamos para o Rio de Janeiro, para a Vila Militar. E aí, então, tomei o curso de atirador de metralhadora”.
E não foi à toa que Ricarte decidiu se dedicar à metralhadora: na época, o Brasil se espelhava no exército francês e, no país, a metralhadora ficava na retaguarda, apoiando a infantaria, mais distante do exército rival. “Eu não queria morrer, tinha medo. Aí, eu disse: ‘Ah, vou ficar na retaguarda’. Fiz o curso de metralhadora, passei em 2º lugar em todo o Brasil, para você ver a vontade que eu tinha. Aí, foi formada a Companhia de Metralhadora”.
[caption id="attachment_252653" align="alignnone" width="1024"] Ricarte Pestana, baiano de 102 anos, foi um dos combatentes brasileiros da Segunda Guerra Mundial. | Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On[/caption]
Mas, depois do curso, Ricarte tomou um susto: no exército americano, que era quem estava treinando os brasileiros para a Segunda Guerra, a metralhadora é o primeiro a entrar em contato com o inimigo. “Que fora eu dei! Alguns, desertaram. Nunca pensei em desertar. E aí, minha filha, eu enfrentei”, conta ele.
Ainda no Rio de Janeiro, os combatentes da FEB foram treinados a usar as armas americanas. Lá, Ricarte descobriu que a metralhadora que usaria pesava 20 quilos. “A placa base, o pé dela, que era separado, pesava 22 quilos. No total, eram 42 quilos”. Dali, foram direto para a Itália, que já tinha perdido a guerra e se rendido aos Aliados — grupo formado por diversos países, como Estados Unidos, Reino Unido, França, União Soviética e, já neste momento, o Brasil —, mas ainda estava ocupada por forças nazistas. A missão dos brasileiros, únicos cidadãos sul-americanos enviados para o confronto, era tirá-los de lá.
E essa missão soava tão nobre, tão importante, que grande parte da população, além de ter apoiado a declaração de guerra do Brasil contra a Alemanha, foi às ruas pedir que o governo brasileiro enviasse tropas para a Europa. Segundo o professor Raul Barreto, depois da sequência de ataques do Eixo aos navios brasileiros, a pressão sobre Getúlio Vargas cresceu:
“Com o início dos ataques à nossa navegação mercante, a população foi mais atingida. Foi aí que começou um movimento, principalmente encabeçado por acadêmicos, intelectuais, e o movimento estudantil. A primeira manifestação pública do Brasil a favor da declaração de guerra, por exemplo, aconteceu na Praça da Sé, em Salvador. As pessoas estavam muito abaladas”.
Um dos casos que mais gerou indignação, como aponta Raul, foi o ataque a uma escuna que transportava alimentos do sul da Bahia para Salvador. No barco, afundado por um submarino alemão, havia apenas seis ou sete tripulantes. “Para você ver como eram as coisas, o tamanho da covardia. Uma escuna chamada Jacira, saiu de Alcobaça, no extremo sul da Bahia, e vinha para Salvador. Estava trazendo frutas, carregamento leve. Um submarino encontrou essa embarcação pequena e colocou todo mundo em um bote para eles irem remando até a praia. Não mereceu nem um torpedo. Esse barco foi afundado a canhões. Poucos dias depois, em 22 de agosto de 1942, Vargas declarou guerra ao Eixo”.
Os combatentes brasileiros foram para a Itália de navio — Ricarte viajou no primeiro barco, o Conte Grande, também chamado de General Meigues. A viagem durou cerca de 15 dias. “Tinha hora para tudo, para todo mundo. Uma organização perfeita dos americanos. Para nós, não faltava nada”, relembra o veterano.
[caption id="attachment_252663" align="alignnone" width="1060"] Em 1943, nasceu a Força Expedicionária Brasileira (FEB), criada exclusivamente para a guerra. Em 1944, Ricarte e mais 25.833 homens e mulheres entraram num navio no porto do Rio de Janeiro e desembarcaram na Itália. | Foto: Arquivo Pessoal[/caption]
18 GRAUS ABAIXO DE ZERO
Chegando na Itália, eles rumaram para o norte. Ricarte ainda sabe o caminho que fizeram de cor: “O navio aportou no porto de Nápoles, porque o de Livorno estava quebrado. E aí, fomos de Nápoles para Livorno em escunas, 50 e poucas escunas para levar toda a tropa. De lá, nós fomos para Pisa, em um acampamento afastado da cidade uns quatro quilômetros. Recebemos mais instruções e armamentos, e partimos para a batalha, a primeira batalha de Monte Castello, que foi no dia 29 de novembro de 1944”.
Monte Castello é uma elevação a 977 metros de altitude, que fica na comuna de Gaggio Montano, na Itália, próximo à cidade de Pistoia. Para libertar a região do exército nazista, os brasileiros, que também estavam acompanhados de americanos, batalharam por cerca de três meses em um frio que atingiu os 18 graus abaixo de zero e, até hoje, é lembrado como um dos invernos mais rigorosos da história da região. Durante as batalhas, como relata Ricarte, os combatentes dormiam na neve, “guardadinhos” em um saco de dormir forrado com penas de galinha:
“A gente tinha roupa de dormir e tinha cama-saco. A gente dormia em cima da neve, vestia a cama-saco, puxava o éclair e ficava guardadinho. E a cama-saco era calçada por penugens de galinha, de frango, que é a mais quente de todas. Não sentia frio. Depois do combate, eu fui dormir, estava muito cansado. Mas, quando estava caindo neve, de vez em quando a gente se sacudia para não acumular em cima da gente. Foi um frio de lascar”.
Leila Queiroz dos Santos, filha de Raul Carlos Queiroz dos Santos, que também lutou na Itália, relembra o que o pai, nascido em Ilhéus e criado em Salvador, contava sobre aquele inverno: para evitar o “pé de trincheira”, que é quando úlceras de frio tomam conta e apodrecem os membros inferiores, os brasileiros revestiam as botas com feno.
“O brasileiro sempre deu nó em pingo d’água, né? Eles descobriram que tinham que aquecer o pé, porque dava muito ‘pé de trincheira’, gangrenava. E aí, quando eles estavam de serviço, na neve, eles não pisavam na neve, colocavam um tijolo aquecido no chão e subiam nele. Eles costumavam usar uma botina e uma galocha por cima. Aí, eles tiravam a botina, enchiam a galocha com feno, rasgavam a manta e embrulhavam o pé. Então, não dava isso. Até para o americano foi uma surpresa, porque mais americanos tinham problemas com o frio do que os brasileiros”, conta ela.
Raul Carlos Queiroz dos Santos faleceu aos 89 anos, em 2012, e preservou tudo o que trouxe para casa depois da guerra: medalhas, capacete, balas, os produtos de higiene que usavam, o recipiente de alumínio em que guardavam a comida, cantil de água, documentos pessoais, fotos, as cartas que recebeu da família, e muito, muito mais. Leila, que sempre foi uma das guardiãs dessa memorabília, mantém tudo protegido, do jeito que o pai deixou, em uma sala da casa onde cresceu.
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Assim como Ricarte, Raul também lutou em Monte Castello e em dezenas de outras cidades italianas até maio de 1945, quando a Alemanha se rendeu. De acordo com Leila, o pai dizia que, durante a guerra, nunca faltou comida para os brasileiros, que até costumavam dividir a ração que recebiam com civis italianos. “Os ingleses e americanos não faziam isso, eles enterravam o que não fossem comer”, relata ela.
Mas, por mais que houvesse comida, como também conta Ricarte, faltava tempo para comer. Durante as batalhas, que podiam durar dias, sem pausas, ele lembra que tinha fome e sede:
“Passei muita fome na guerra, muita sede. Não por falta de comida, mas de tempo. Correndo atrás do inimigo. Em combate, a cozinha do exército não podia ir lá, e a gente ficava com fome. Um dia, um colega meu gritou: ‘Pestana! Tem comida aqui!”. Fui para lá. Era uma ruma de ovos, a galinha chocando os ovos. Fui chegando, ele pegou um ovo, bateu no sabre, comeu, e disse: ‘Pestana, ‘tá’ ruim’. Aí, eu peguei o meu do chão e bati. Quase que entalava, mas eu comi! Quando peguei o segundo, caiu no chão, e o pintinho já estava quase nascendo, quase pronto. Para matar a fome, a gente também derrubava galho de pinho com a metralhadora, para pegar os frutos. Mas, isso não é nada, não. O principal mesmo foi a luta”.
[caption id="attachment_252666" align="alignnone" width="1024"] Leila Queiroz, filha de Raul Carlos Queiroz, mantem as memórias do pai na guerra em um memorial em casa. | Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On[/caption]
A LUTA
Tomar Monte Castello de volta levou mais de três meses: as batalhas foram de 24 de novembro de 1944 a 21 de fevereiro de 1945. A primeira delas, como aponta o professor Raul Barreto, foi um fracasso. Em partes, por ter sido a primeira experiência dos brasileiros na guerra. Em partes, pelos alemães serem mais bem preparados, tanto fisicamente, quanto no quesito de armamentos e experiência em combate.
“A pretensão original do governo brasileiro era levar três divisões de exército para lá, o que daria cerca de 75 mil homens. Mas, eles perceberam que isso não seria possível por conta dos exames de aptidão física, de saúde. Inclusive, eles tiveram que baixar um pouco o sarrafo, porque estavam com critérios muito elevados. Só conseguimos formar uma divisão porque eles flexibilizaram, e deu muito trabalho”, destaca o professor.
E essa dificuldade em formar um exército foi sentida na prática pela família de Leila: o pai dela, Raul Carlos, tinha um irmão gêmeo, Carlos Raul. Os dois foram convocados, mas só um deles foi considerado apto após a realização dos exames. Raul Carlos foi para a Itália. Carlos Raul ficou no Brasil.
Para Ricarte, aquela primeira batalha em Monte Castello, que também foi a primeira na vida dos combatentes, foi como um “batismo de fogo”. “Ô, minha filha… foi o batismo de fogo. Não sabia o que era um combate, só através das instruções. Aí, fomos lutar, tirar os alemães de Monte Castello. Um verdadeiro fracasso. Embaixo de Monte Castello, tinha uma ‘vilazinha’. Passamos por essa vila, artilharia atirando. Depois, os alemães iam vir ao nosso encontro. Aí, abrimos fogo, eu com a minha metralhadora. Fazia barragem de tiro. Quando havia necessidade, pegava a metralhadora, com tripé e tudo! 42kg! Botava nas costas. Mas, não foi suficiente”.
[caption id="attachment_252451" align="alignnone" width="916"] Os combatentes brasileiros lutaram na Itália de setembro de 1944 até maio de 1945. | Foto: Ministério da Justiça e Negócios Interiores[/caption]
Nesse primeiro dia, o pelotão de Ricarte foi cercado por forças nazistas. “Os alemães circularam um pelotão. E esse pelotão era o meu! Foi aí que veio a maior preocupação. Armando, que era o sargento, disse: ‘Vamos morrer aqui! Ou, seremos presos. Mas, eu tenho uma ideia. Vou mandar um aventureiro ao nosso comando dizendo onde nós estamos e o perigo que está’”. Após um rápido sorteio, Ricarte foi o escolhido para descer a colina sozinho e procurar ajuda. “Eu não tive medo. Uma coisa que sempre esteve comigo é que eu nunca senti medo de nada, em nenhum momento. E aí, os meus colegas: ‘Vá, meu irmão, vá. Vá com Deus! Vá nos salvar!’. Eu saí com granadas e uma metralhadora de mão”.
Para escapar dos disparos do exército nazista e chegar à base, ele precisou rastejar. Mas, por mais que os combates de Monte Castello tenham sido longos, gelados e difíceis, foi a Batalha de Montese, travada dentro da cidade, entre ruas e casas de moradores italianos, a mais angustiante e sangrenta. Ela durou três dias, de 14 a 17 de abril de 1945. O pai de Leila, Raul, descrevia o combate de Montese como o pior de todos — e o que mais resultou em ferimentos e mortes de brasileiros. No total, foram cerca de 430 baixas: 34 mortos e quase 400 feridos, soldados aprisionados e desaparecidos.
“Meu pai dizia que o mais duro era ver o civil, porque o civil era o que mais sofria. Apesar de a Batalha de Monte Castello ser a mais famosa, meu pai dizia que a pior e a mais sangrenta foi a de Montese, porque foi dentro da cidade. Era tudo bem mais difícil”, relata ela. Raul Carlos, inclusive, foi ferido em combate. “Ele teve deslocamento de ar. É como a gente vê nos filmes: a bomba estoura e o soldado sobe. Foi uma granada. Ele ‘botou’ sangue por tudo que é canto: ouvido, boca, nariz. Ele desmaiou e acordou dias depois, no hospital”.
Já de volta ao Brasil, no pós-guerra, Raul Carlos começou a sofrer com fortes enxaquecas, e conviveu com esse problema até o fim da vida. Na velhice, durante uma consulta médica, ele descobriu que as dores eram sequela do deslocamento de ar. “O tímpano dele também foi perfurado, e ele conviveu a vida inteira com isso. Ele não podia mergulhar, por exemplo. E levou muitos anos sem poder andar de avião”, detalha Leila. Em reconhecimento, ele levou para casa a “Medalha de Sangue do Brasil”, entregue pelo Exército a todos os que foram feridos em combate.
Ricarte também recorda Montese com dor. É assim que ele, que também sofreu deslocamento de ar, relembra essa cidadezinha italiana: “Foi onde eu sofri”. “Sofri muito mais do que em Monte Castello. Lutas na cidade toda. Nenhuma tropa podia avançar em Montese, porque os alemães bombardeavam todo mundo. Ô, filha… a rua cheia de gente. Fogo por todos os lados. Nosso lado atirando para o lado deles, os civis… eu com pena dos civis. Meninos, mocinhas, rapazinhos… iam passando pela rua, chorando. Eu falava com o meu ajudante para pegar todos e deixar junto a mim. Mas, se ele fosse, ele morreria. Fogo cruzado. Estava chovendo, aquela chuva fina. Lama por tudo quanto é lugar”.
Após a batalha, vencida pelos brasileiros, não havia onde dormir. Montese, como conta o veterano, era uma cidade em ruínas. No fim, das 1121 casas que haviam no burgo (fortaleza ou sítio fortificado, ocupado por uma guarnição militar), 833 estavam destruídas. “Depois do combate, a gente não podia dormir dentro de nenhuma casa, porque estava tudo em ruínas”. Naquele momento, o único jeito de se aquecer, recorda Ricarte, era deitar em cima dos corpos, que estavam largados no meio da rua. “Eu juntei os corpos mortos, alemães. Botamos as mantas por cima e fomos dormir. Dormi em cima de morto! Mas, não tinha medo de nada”.
[caption id="attachment_252453" align="alignnone" width="1024"] A Batalha de Montese, travada dentro da cidade, entre ruas e casas de moradores italianos, foi a mais mortal enfrentada pelos brasileiros. | Foto: Arquivo Público[/caption]
Hoje, 80 anos depois da criação da FEB, os combatentes brasileiros ainda são celebrados nas cidades italianas que livraram do nazismo. Em homenagem a eles, o município de Montese deu o nome “Piazza Brasile” a uma de suas praças. Em abril de 2005, em comemoração aos 60 anos do fim do conflito, Raul Carlos voltou à Itália ao lado de outros veteranos, da esposa e da filha, Leila. Na época, ele tinha 82 anos. “As gerações foram passando as histórias da guerra, né? Os brasileiros são vistos como os libertadores deles, foram recebidos como heróis”, relata Leila.
Nessa viagem, quando chegaram à cidade de Porretta Terme, eles foram surpreendidos por uma senhorinha italiana, sobrevivente da guerra. Quando ela viu o ônibus cheio de veteranos brasileiros, parou na porta e fez questão de cumprimentá-los, um por um. “Essa senhora ficou na porta do ônibus e queria abraçar todos os que desciam. Ela era criança na época, mas ela lembrava de como os brasileiros trataram os civis. Muita emoção. Foi um chororô!”, conta ela.
Nessa excursão, Raul Carlos, que, segundo a filha, nunca chorava, parou no hospital duas vezes. “Foram muitas emoções. Nós fomos a uma cidade, Gaggio Montano, onde ele viu a casa em que o pelotão dele ficou descansando para a batalha de Monte Castello. Foi a primeira vez que ele passou mal. À noite, ele teve uma falta de ar, a gente teve que chamar uma ambulância”.
Ainda nos dias de hoje, crianças de Montese são ensinadas a cantar o hino da FEB na escola. Na “Festa della Liberazione”, comemorada anualmente em abril, elas entoam palavras em português pelas ruas da cidade: “Eu venho da minha terra / Da casa branca da serra / E do luar do meu sertão / Venho da minha Maria / Cujo nome principia / Na palma da minha mão / Braços mornos de Moema / Lábios de mel de Iracema / Estendidos para mim. / Ó, minha terra querida / Da Senhora Aparecida / E do Senhor do Bonfim!”.
Confira um vídeo da festa, gravado em 2015 e publicado nas redes sociais:
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A VOLTA
Em 2 de maio de 1945, a Alemanha se rendeu e a guerra acabou na Europa. No total, os brasileiros passaram oito meses em combate. A volta para casa, porém, levou um tempo: como não havia navios para todo mundo, os combatentes voltaram aos poucos, em grupos. Enquanto esperavam, eles aproveitaram para conhecer a Itália e, alguns, para viajar pela Europa.
Ricarte conta, com um misto de orgulho e decepção, que foi um dos cinco combatentes de sua companhia a ganhar um passaporte para passear pelo continente. Orgulho por ter sido o titular do passaporte número 1. “Aproveitei esses seis meses, corri a Europa toda! O Oriente Médio, o Egito, a Grécia… dois lugares que eu tinha vontade de conhecer eram a Grécia e o Egito. Conheci tudo naquela época”. Em três ocasiões, Ricarte conta, ele foi classificado como Herói de Guerra — por isso, foi “premiado” com o documento. “Tudo o que eu fazia de ‘heroísmo’ estava no prontuário. Mas, filha, eu nunca fui herói de guerra, não. Ao contrário. Por não ter medo, eu fazia de tudo para me livrar, para voltar vivo para a minha família. E esse tudo, para o Exército, era heroísmo. Na minha companhia, tinha 200 homens. Só cinco tiveram passaporte”.
Mas também houve decepção por tão poucos terem sido contemplados. Entre estes, nenhum era preto. “Uma coisa eu não gostava. Nenhum negro podia. Só gente branca. Os pretos da companhia sofreram igual à gente. Nós éramos um só. Eu não gostei. Eu gostaria que meus colegas, que também eram heróis, tivessem passaporte”.
De volta ao Brasil, a primeira parada dos veteranos foi na cidade do Rio de Janeiro. Lá, participaram de um desfile. Ricarte descreve a cena como “apoteótica”. “A cidade toda foi assistir”.
[caption id="attachment_252659" align="alignnone" width="664"] Ricarte Pestana antes de ir à guerra. | Foto: Arquivo Pessoal[/caption]
Já de volta a Salvador, Raul Carlos, que também participou do desfile, foi recebido em casa, no Santo Antônio Além do Carmo, com um caruru. Uma das vizinhas da família, Rosina Queiroz, que hoje está com 94 anos, foi até a porta da residência para assistir à chegada do menino que lutou na Itália. E ela confessa: “Eu não fui para a festa! Minha prima foi convidada, me chamou para ir. Eu sempre fui meio acanhada. Como é que vou para um lugar que nunca nem fui, não conheço ninguém? Eu fiquei defronte à casa dele, a casa cheia. Aí, ele foi para a janela”. Anos depois, eles se casaram, e ficaram juntos até o falecimento de Raul Carlos.
Para os ex-combatentes, os primeiros dias em casa foram bonitos, gloriosos. O problema é que foram só os primeiros dias: dali para frente, eles, que estavam desempregados, tiveram que reconstruir suas vidas do zero, sem um tostão de auxílio do governo. Em 1945, enquanto os brasileiros ainda estavam na Itália, aguardando o barco para o retorno, Getúlio Vargas dissolveu a FEB. De acordo com o professor Raul Barreto, essa decisão foi política. “O governo Vargas era uma ditadura. Não fazia sentido: os brasileiros foram mandados para a Itália para combater uma ditadura, mas, viviam dentro de uma. A pressão sobre o presidente aumentou”.
Taxados de loucos por grande parte da população, arranjar emprego não foi fácil. Raul Carlos, depois de passar um tempo no interior refrescando a cabeça, conseguiu um trabalho em uma loja da Singer. Até hoje, a família guarda uma máquina de costura da década de 1950 da marca, dada por ele de presente de noivado a Rosina. Leila relata: “Demorou um pouco para ele conseguir refazer a vida. Alguns lugares não aceitavam, porque eles voltaram com fama de que tinham ficado malucos. Foi muito difícil a aceitação”.
[caption id="attachment_252652" align="alignnone" width="1024"] Em um álbum com fotos da guerra, Raul Carlos Queiroz escreveu: "Em casa, afinal! Em meio dos entes mais queridos, eu senti a maior satisfação da minha vida. Consegui, mesmo com sacrifícios, o que tanto implorei a Jesus: a minha volta".[/caption]
De volta à Bahia, o recomeço de Ricarte também não foi uma maravilha: de cara, conseguiu uma vaga na administração estadual, mas com um salário que não compensava o esforço. Anos depois, se formou na universidade, fez mestrado, doutorado, e se tornou professor no Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Lá, ele, que hoje fala quatro línguas, passou 20 anos. “Estudava noite e dia”, diz o veterano.
A “VILA DOS MALUCOS”
Entre 1945 e 1950, devido à falta de assistência do governo federal, diversas associações de ex-combatentes começaram a surgir no Brasil. Uma delas fica em Itapuã, em Salvador. Isso porque, na década de 1970, o governo do estado da Bahia concedeu terrenos aos veteranos e suas famílias no bairro, e lá eles fundaram a Vila dos Ex-Combatentes. Em frente à casa de Leila, por exemplo, fica a casa de Ricarte Pestana.
No mesmo período, devido às pressões das associações, os soldados conquistaram mais um benefício, mesmo que excludente: o governo federal concedeu aos ex-combatentes um cargo no funcionalismo público, mas apenas para os alfabetizados. Raul Carlos, por exemplo, se tornou servidor do Tribunal Regional do Estado (TRT). Mas, foi só em 1988, com a Constituinte, que os veteranos sobreviventes passaram a ter direito legal a uma compensação especial, equivalente à pensão deixada por um segundo-tenente do exército.
Porém, a vida em sociedade, como relata Leila, nunca foi fácil. Anos depois da guerra, os veteranos ainda eram vistos como loucos. Na adolescência, ouvia as pessoas dizerem que ela e a família viviam na “Vila dos Malucos”. “Ônibus não queria parar. E, quando parava, ainda diziam: ‘Ah, vai para a Vila dos Malucos!’. Eu deixei de ir para o desfile de 7 de Setembro por isso, porque eu brigava na rua. Quando os veteranos iam desfilar, eles falavam: ‘Olha, lá vem os malucos!’. E eu respondia: ‘Vai estudar, ignorante’. Ou, então, diziam que eles tinham ido para a Itália para passear. Esse preconceito durou muito tempo”.
Na Vila dos Ex-Combatentes, próximo à casa de Leila, mora José Pedro Pinheiro, de 100 anos. Ele também foi para a Itália. Uma das filhas de José, Ana Jacira Pinheiro, diz que, quando mais novo, o pai costumava falar mais sobre o que viveu no conflito — hoje, prefere relembrar as histórias leves, do tempo que passou na Itália enquanto esperava o navio de volta, no pós-guerra.
[caption id="attachment_252685" align="alignnone" width="1024"] José Pedro Pinheiro, de 100 anos, natural de Serrinha, também foi enviado para a Itália pela FEB. | Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On[/caption]
É que a tragédia de José também é uma tragédia de família. Em 1943, aos 19 anos, ele e o irmão, Luiz Pinheiro, foram convocados, juntos, para integrar a FEB. Mas, em 1945, José voltou para casa sozinho, sem Luiz. Até hoje, 80 anos depois, ninguém sabe o que aconteceu com o pracinha perdido. “Surgiu uma conversa de que, na viagem de navio até o Rio de Janeiro, ele pode ter caído, ou até mesmo se jogado no mar com medo de ir para guerra. Mas, ninguém sabe se ele chegou a ir para a Itália ou não, ou se fugiu no Rio de Janeiro. Durante muitos anos, enquanto a minha avó foi viva, ela procurou por esse filho. E, realmente, nunca teve notícias do que aconteceu com o meu tio, o Exército nunca falou nada”, lamenta Jacira.
A reportagem do Aratu On entrou em contato com a assessoria de imprensa do Exército Brasileiro em busca de informações sobre o paradeiro de Luiz, que respondeu: "Informo que o nome do Sr. LUIZ PINHEIRO não consta da Listagem Geral da Força Expedicionária Brasileira".
Agora, quando perguntado sobre o que viu da Segunda Guerra Mundial, José, natural de Serrinha, olha para a frente, tranquilo, e responde: “Eu não queria ir, era obrigado. Se dá a ordem de ir, tem que ir. Mas, já esqueci tudo! Graças a Deus, esqueci”.
[caption id="attachment_252690" align="alignnone" width="1024"] Hoje, 80 anos depois da criação da FEB, os combatentes brasileiros ainda são celebrados em cidades italianas. | Foto: Arquivo Pessoal[/caption]
Essa é a primeira reportagem de uma série do Aratu On, Bahia na Segunda Guerra Mundia, que detalha a relação da Bahia e dos baianos com a Segunda Guerra Mundial, conflito que aconteceu entre 1939 e 1945. As outras reportagens, que serão publicadas nas próximas semanas, falam sobre a ocupação norte-americana em Salvador, que culminou nas reformas do aeroporto da cidade e da Estrada Velha do Aeroporto, e no aumento da prostituição na capital baiana. Por fim, a série detalhará a perseguição e prisão sofrida por imigrantes na Bahia durante a guerra, e a construção de uma espécie de colônia para alemães na cidade de Maracás, a 350 km de Salvador.
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