Cultura

Exclusiva com Kate Winslet: em 'Lee', atriz dá vida à lendária fotógrafa na 2ª Guerra

Filme estreia este mês no Brasil; veja trailer ao final da entrevista

Fonte: Enoe Lopes Pontes, colunista do Aratu On

Exclusiva com Kate Winslet: em 'Lee', atriz dá vida à lendária fotógrafa na 2ª GuerraFoto: reprodução/Lee

“Uma mulher de muitas faces”, é assim que Kate Winslet define a sua nova personagem, Lee Miller, do filme "Lee", que estreia no Brasil no dia 19 de dezembro. 


Fotógrafa e modelo, Miller foi uma das poucas mulheres a cobrir a Segunda Guerra Mundial e conseguir imagens impactantes e únicas sobre este momento da história da humanidade. Um exemplo é a foto clássica de Lee dentro da banheira de Hitler. Dar a vida uma figura como ela foi uma experiência ampla e profunda, de acordo com Winslet, que se dedicou a cada detalhe da produção.


Em entrevista exclusiva à jornalista e crítica Enoe Lopes Pontes, colunista do Aratu On, Kate Winslet relata como dedicou grande parte de seu tempo na construção do universo inteiro de Lee Miller, indo além do que já se conhecido sobre sua jornada fotografando campos de concentração, mas também revelando particularidades de sua vida íntima e humanizando Lee, através de uma busca por mostrar para o público uma totalidade a personalidade e o caráter de Lee. Obstinada em observar cada detalhe do longa-metragem, Kate, ao lado da diretora Ellen Kuras, gastaram longos momentos das gravações e pós-produção na procura de equilibrar cada elemento do filme, seja de luz, som, objetos de cena, entre outros.


"Existiam alguns detalhes novos inseridos na câmera que apenas eu sabia como mexer, como, por exemplo, mudar o filme", disse. 


E para além da coordenação de todas as equipes do longa, Winslet também relata que investiu em um processo de aproximação com a câmera fotográfica. Principal instrumento de trabalho de Lee Miller, a Rolleiflex utilizada nas filmagens era manuseada quase exclusivamente pela intérprete, pois ela era a única pessoa envolvida na obra que sabia mexer na máquina completamente.


No entanto, este relacionamento de Kate com a Rolleixflex é descrito por ela como algo além do manual. “Também existia o entendimento do que aquilo significava para Lee, o que foi tirado dela emocionalmente, para ter tirado aquelas fotos, compreendendo o quão difícil foi para ela escalar aqueles vagões de trem, se deparar e ficar entre todos aqueles corpos e fotografá-los, realmente tentando me colocar no lugar dela”, conta.


Confira a íntegra da entrevista com Kate Winslet:


ENOE LOPES PONTES (ELP) – Eu assisti quase todos os seus filmes. Somente Titanic eu vi 92 vezes (risos). Você sempre traz detalhes ou algo maior, que são uma novidade. Em Lee, eu sinto que você construiu diferentes camadas da personagem. A gente tem a Lee que está com seus amigos, claro, temos a Lee durante a guerra, a Lee que está tentando fazer com que suas fotos sejam publicadas. Como você construiu todas essas mulheres dentro de uma só?


KATE WINSLET (KW) – A Lee era uma mulher de muitas faces, sabe? Ela era uma amiga incrível para muitas pessoas, ela era uma esposa mais do que maravilhosa, ela era dedicada ao seu trabalho, ela era dedicada ao David Sherman, quando eles estavam juntos na guerra, ela era uma amiga incrível para as suas amigas mulheres. E por conta do que Lee experienciou e sobreviveu, um trauma terrível quando ela era criança, o fato de que ela não odiava o mundo e de que ela não odiava os homens e ela não tinha aquele sentimento de vingança dentro dela, para mim, isso foi tão notável. E eu sabia que quando eu fosse atuar como ela, eu não poderia atuar mostrando apenas um lado único dela: “a fotógrafa que foi à guerra”. Eu precisava dar conta de todos os aspectos da sua vida antes da guerra, para que a plateia pudesse compreender o que aconteceu com ela durante sua vida, em seus anos de adolescência, em seu tempo de juventude, para que o público pudesse sentir junto com ela todas as coisas que ela viesse sentir e vivenciar. 


ELP - Sim, obrigada. Sempre digo para meus alunos que você é a rainha dos micromovimentos!


KW – Oh!


ELP - Sim. É tipo uma coisa que eu faço em aulas de atuação para explicar como mesmo que você faça movimentos pequenos, você pode mostrá-los para a plateia. Você traz isso para Lee também, assim como você faz com todas as suas personagens e eu acredito que isso é bastante desafiador, mas você também tem a câmera. E Lee tem uma noção de espaço, do seu próprio corpo e da câmera dela e onde ela está, como na cena que ela está com soldados, eles atirando, e ela vai lá e tira aquela foto maravilhosa! Como você construiu esse relacionamento, porque eu acredito que é um relacionamento, de Lee com a câmera, como se a câmera fosse parte de seu corpo? Porque você nunca esquece o que está ao redor dela.


KW – Você está completamente certa! A câmera precisava parecer uma parte do meu corpo! Não poderia parecer um adereço, não poderia parecer como uma coisa… (pega uma caneca dela para dar o exemplo) que ela pega apenas e coloca para cima e para baixo. Eu realmente tinha que saber como usá-la, eu realmente tinha que entender perfeitamente como ela funciona. Porque eu também tinha que entender as suas pequenas peculiaridades e imperfeições, porque a Rolleiflex é uma câmera velha. E a que a gente tinha, na verdade, foi construída a partir de três Rolleiflex diferentes, que um historiador em câmeras reuniu para nós, para que ela ficasse exatamente igual a de Lee. Então, existiam alguns detalhes novos inseridos na câmera que apenas eu sabia como mexer, como, por exemplo, mudar o filme. Eu era a única que podia trocar o filme, porque ele tinha esse botãozinho nela, atrás da câmera, que ninguém mais sabia como colocar a câmera na posição exata para pôr esse botão para dentro. Então, eu passei muito tempo com a câmera. E também tem mais uma coisa!


ELP – Sim.


KW – Então, quando você usa a câmera Rolleiflex, o corpo é o tripé dela. Então, segurar aquela câmera (demonstra o movimento de segurar e manusear a Rolleiflex), assim que ela tinha determinado qual seria o seu enquadramento, havia composto a sua leitura de luz e o seu foco estava ajeitado, ela segurava a respiração! Porque se você respira (Winslet fica de lado e pega sua caneca novamente para mostrar melhor como funcionou a movimentação de seu corpo e da câmera)... se você respira (respira fundo e forte duas vezes), a câmera se mexe. Então, quando estávamos editando o filme e estávamos fazendo a mixagem de som, nós tivemos esse dia muito longo no estúdio e o técnico de som disse: “Oh, Kate, não se preocupe! Vamos mexer apenas em algumas coisas pequenas e a gente te mostra tudo, quando você chegar de manhã cedinho amanhã”. Aí, eu disse ok, está bem! Então, eu entro na sala e digo ok, vamos dar play desde o começo (do filme), eles deram play e tudo que eu conseguia ouvir era esse “ahhh ahhh” (Kate faz “ah” para mostrar som de respiração alta). E eu fiquei “o quê? O que é isso? O que é essa respiração toda? De onde é que vem esse barulho todo?” Aí, eles disseram “não, a gente só colocou umas respirações, porque estava bem silencioso. Acho que o departamento de som não pegou a sua respiração”. E eu fiquei, tipo, “não acredito nisso, meninos!” (risos). “Eu estou segurando a minha respiração!!! Não é para ter respiração, gente!! Não!” (risos, muitos risos). “Eu estava segurando minha respiração!”


ELP – (risos) Sim!


KW – Eles ficaram “ah, ok”. Porque eu entendia aquela câmera tão bem. E, claro, não é somente sobre saber usar a câmera, é sobre entender como o corpo físico de Lee era uma parte desta experiência para ela, de usar aquela câmera, de segurar aquela câmera, realmente transmitindo, emocionalmente, a sua alma e seu coração, através disso, sabe, de contar as histórias de outras pessoas… Era um processo muito bem detalhado! Sim, era.


ELP – A gente tem visto que alguns filmes têm contado ou recontado histórias sobre mulheres, histórias nossas, histórias sobre o mundo, mas com as nossas perspectivas. Então, como você vê esse espaço que tem se tornado um espaço, progressivamente, maior, mesmo que lentamente. Mas, nós estamos agora vendo essas histórias.


KW – Bem, eu acho que, de um lado, é um momento incrivelmente empolgante, porque a gente tem visto tantas performances incríveis de atrizes em papéis principais, projetos liderados por mulheres, muito mais mulheres atrás das câmeras, mas a gente precisa continuar fazendo. A gente não pode parar! A gente precisa continuar caminhando, porque a gente precisa mudar a cultura e quando a gente mudar a cultura, a gente vai conseguir mudar, de fato, a forma como a indústria funciona. E eu acho que estamos chegando lá. Então, é uma sensação boa de um tempo importante.


ELP – Gostaria muito de perguntar uma coisa sobre a mis-en-scène*, porque eu sinto que Lee é a base da mise-en-scène do filme. Por isso, gostaria de saber como você trabalhou com a Ellen (Kuras) no sentido de desenvolver essa mistura de retenção e expansão, interno e externo de Lee, na lógica da mise-en-scène? 


KW – Nós fizemos tudo juntas. Tudo em termos de como o filme iria ser, em termos visuais, seja na direção de arte, cenários, figurinos, o desenho de luz, a gente trabalhava em tudo isso juntas. A gente também sabia que…Bem, o roteiro demorou para ficar pronto e no roteiro nós fomos guiadas pela construção da imagem verdadeira de Lee e em todos os cenários que ela está, que são aqueles que ela captura todas aquelas imagens, que você pôde ver no filme. Então, nós fomos realmente rigorosas em relação a isso, a essa ideia de seguir a perspectiva de Lee. Por exemplo, quando fomos para Dachau, nós não vemos muito de Dachau. O que você vê são essas áreas bem pequenas, porque nós focamos apenas naquilo que sabemos exatamente que Lee viu. Ao fazer isso, nós fomos capazes de manter aquele “female gaze”. E isso foi muito, muito importante.


Assista ao trailer de "Lee":



Enoe Lopes Pontes


Doutoranda e mestre em Comunicação, formada em Artes Cênicas e em Comunicação Social, Enoe Lopes Pontes é pesquisadora, jornalista e crítica de cinema e séries. É membro da ABRACCINE e do Coletivo Elviras, votante no Globo de Ouro 2023. Cinéfila desde os 6 anos, sempre procurou estar atenta para todo tipo de produção, independentemente do gênero, classificação ou fama. Do cult ao pipoca, busca observar as projeções com cuidado e sensibilidade. Filmes preferidos: Hiroshima Mon Amour e Possession. Instagram: @enoelp


*Mise-en-scène: expressão francesa que significa "pôr em cena" e é usada para descrever todos os elementos que compõem uma encenação


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