Consciência Negra na Cultura: Ilê Aiyê é pioneiro e influenciou blocos afro da Bahia
Conheça a história do primeiro bloco afro do Brasil e como ele transformou a cultura negra soteropolitana
Fonte: Anna Caroline Santiago
"Que bloco é esse? Eu quero saber. É o mundo negro que viemos mostrar pra você", como canta a música "Que Bloco É Esse", do Ilê Aiyê, um dos mais belos e emblemáticos blocos afro da Bahia. No estado mais negro fora da África, os tambores ressoam como um poderoso símbolo de resistência e afirmação da identidade nas ruas de Salvador, especialmente nos blocos afrocentrados que preservam a memória ancestral e celebram a cultura negra. Na última reportagem da série especial da Consciência Negra, o assunto é 'Cultura'.
“Ahh…Se Não Fosse o Ilê Aiyê”
O tema do Cortejo Afro no Carnaval deste ano em Salvador reverencia o legado dos blocos afros, celebrando suas origens na capital baiana e como eles devem ser lembrados: "Meio século de Blocos Afro. Ahh… Se não fosse o Ilê Aiyê!". Completando 50 anos de história em 2024, o Ilê Aiyê espalhou suas raízes e se tornou parte de um movimento, que hoje abriga centenas de expressões vivas do Carnaval que ecoam por toda a Bahia.
A inspiração e o fortalecimento de uma futura onda de blocos afro na Bahia nasceram nas ruas do Curuzu, no bairro da Liberdade, em Salvador - berço do Ilê Aiyê. Do Olodum, no Pelourinho, passando pelo Malê Debalê, na Lagoa do Abaeté, e chegando até o Cortejo Afro, em Pirajá, cada bloco desempenhou um papel na construção e na difusão da cultura baiana. Mas uma coisa é certa: tudo começou com o Mais Belo dos Belos.
Primeiro bloco afro do Brasil, o Ilê Aiyê foi fundado em novembro de 1974, por Antonio Carlos dos Santos, o "Vovô do Ilê". Ele deixou o emprego no polo petroquímico de Camaçari para se dedicar ao bloco e, assim, o mundo testemunhou o surgimento de movimentos que lutavam pela valorização da cultura ancestral.
Foto: Redes sociais | @blocooileaiye
O Ilê Aiyê surgiu em pleno período da ditadura militar brasileira, instaurada em 1º de abril de 1964 e que perdurou até 15 de março de 1985. Esse regime foi um momento de intensa resistência para os negros que, além de serem perseguidos, enfrentaram torturas - especialmente os artistas que lutavam por liberdade de expressão.
Por isso, segundo o diretor do Ilê Aiyê, Edmilson Lopes, o início não foi tão bonito quanto é hoje. Para alcançar o espaço que o bloco ocupa atualmente, foi preciso ousadia e coragem, enfrentando riscos. “Quando falo em perigo, me refiro à ditadura militar, quando pessoas influentes eram perseguidas por se posicionarem politicamente a favor da democracia”, afirmou.
Lopes explica que, apesar das décadas que se passaram, o objetivo permanece o mesmo: "tornar os jovens protagonistas da cena cultural da Bahia”. No início, a missão era dar visibilidade a um povo tratado como minoria.
Foi assim que o Ilê Aiyê transcendeu e se tornou um movimento de empoderamento negro, inspirando a criação de outros blocos. Um exemplo disso é a forma como o Ilê sempre exaltou as mulheres negras, com o concurso para a escolha da "Deusa do Ébano – a Rainha do Ilê".
Foto: Redes sociais | @blocoileaiye
O diretor credita a evolução do bloco ao longo dos anos às “mudanças conceituais do povo brasileiro”, embora reconheça que ainda há muito a ser feito. “A transformação é coletiva, precisamos do povo para sustentar o bloco por 50 anos, mas ainda há muito por mudar”.
Antes de ir às ruas e se tornar um bloco carnavalesco, o Ilê Aiyê foi uma verdadeira transformação social, atuando na educação e na cultura e levando a história negra para as ruas e escolas. Edmilson Lopes conta que o bloco teve origem nas ruas e, por isso, suas raízes cresceram junto ao povo e suas necessidades, antes de se tornar parte da folia.
Foto: Divulgação | @blocoileaiye
Como diz a música ‘Bom Batuque Ilê Aiyê’, o bloco é mais do que uma festa, é um estilo de vida. O Ilê Aiyê se transformou em uma escola de vida para jovens da comunidade, criando um senso de pertencimento que, com o tempo, fortaleceria outros blocos.
Para o diretor, todo esse legado é resultado da visão de Vovô do Ilê. ‘Essa semente quem plantou foi Vovô, ele é o conceito vivo das fronteiras que o Ilê ultrapassou’, diz. “O papel do Ilê é ser uma entidade farol, guiando novas conquistas e enfrentando a exclusão do povo preto, e o povo faz parte disso”, enfatiza.
Foto: Divulgação | @blocoileiye
Como afirma Lopes, "O Ilê ultrapassou fronteiras", e a prova disso veio com a primeira turnê internacional do bloco, realizada entre junho e julho deste ano, após 50 anos de legado. Os tambores do mais antigo bloco afro do Brasil ecoaram com força nos corações de africanos, alemães, portugueses, irlandeses, escoceses, holandeses, ingleses, espanhóis e italianos, levando a cultura afro-brasileira a um público global.
Identidade e inspiração
As cores amarela, vermelha e branca, juntamente com a máscara, se tornaram símbolos poderosos na construção da identidade baiana, e é impossível ver essas referências sem associá-las ao Ilê Aiyê. Sempre destacando a cultura afrodescendente, o bloco seguiu como uma fonte de inspiração, empoderando os blocos que surgiriam depois.
Cada elemento carrega um significado profundo: os traços brancos representam a paz; o amarelo faz referência à beleza e riqueza cultural; e o vermelho simboliza o sangue do povo negro, derramado durante as lutas por libertação.
Foto: Divulgação | @blocoileaiye
Inspirada nessas cores, Dete Lima, estilista do Ilê Aiyê, desenvolveu turbantes com amarrações únicas e fantasias confeccionadas com tecidos estampados que destacam os integrantes, se tornando a marca registrada do bloco. Além disso, o Ilê Aiyê resgatou o uso de enfeites de palha, contas e búzios em suas roupas e adereços, criando um visual rico em cores e texturas que reflete a diversidade e a riqueza cultural.
Lopes destaca que cada detalhe dito como identidade visual do Ilê é a tentativa de reforçar a “dimensão baiana e brasileira”, que é negra. Segundo ele, o Ilê plantou sementes na cultura e, gradualmente, aqueles que acreditaram na missão do bloco colheram os frutos. “Germinamos conceitos, fortalecemos as raízes e acreditamos no melhor que está por vir”.
Eu sou Olodum, quem tu és?
Em poucos anos, o Ilê Aiyê se tornou referência e começou a compartilhar sua identidade. As cores vermelha e amarela, marcantes no bloco, deram vida a outro ícone da cultura baiana: o Olodum.
Hoje tombado como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado da Bahia, o Olodum nasceu em 1979, no Centro Histórico, sobre o chão de pedras do Pelourinho. Fez sua estreia no Carnaval em 1980 e, ao som de hits como "Vem Meu Amor" e "Faraó Divindade do Egito" conquistou milhares de fãs que carregam consigo o símbolo de paz e amor.
Fenômeno internacional, o Olodum já se apresentou em mais de 43 países e, entre seus feitos históricos, destaca-se como o único bloco na América a participar de uma performance com Michael Jackson. O rei do pop veio até as ruas do Pelourinho para gravar o clipe de "They Don’t Care About Us", lançado em 1995.
Foto: Reprodução | Youtube
O Ilê Aiyê ensinou a importância de homenagear os ancestrais, e assim surgiram tradições como o nome Olodum, de origem Yorubá, que na religião Candomblé significa "Deus dos Deuses’ ou ‘Deus Maior".
Como os blocos nascem como sinônimo de resistência, com o Olodum não seria diferente. Fundado por Geraldo Miranda, o bloco foi criado sob o lema da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH):
“Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos. Ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.”
Diretamente de Itapuã
Foi às margens da Lagoa do Abaeté que o bloco Malê Debalê começou a dividir o espaço no Carnaval com o Olodum, que também surgia na mesma época, em 1979.
Foto: Divulgação | Secom PMS
Assim como o Ilê Aiyê, que revolucionou o Carnaval ao trazer a ancestralidade afro para o centro das celebrações, o Malê Debalê carrega o título por sua história como "O Maior Balé Afro do Mundo", levando a dança e a tradição afro para as ruas. Além disso, o bloco desempenha um papel fundamental na educação e na valorização dos jovens de Itapuã.
O nome do bloco faz referência aos malês, negros muçulmanos trazidos à Bahia como escravizados, que representam mais uma faceta da resistência dos povos negros. Ao adotar esse nome, o Malê Debalê se conecta diretamente à luta histórica na Revolta dos Malês de 1835, quando um grupo de escravizados malês protagonizou a maior revolta escrava urbana já ocorrida no Brasil.
Filho caçula do Ilê
Se achávamos que já havíamos visto o bastante, o artista plástico Alberto Pitta chegou e transformou a identidade cultural baiana, ao assumir o Cortejo Afro em 1998.
Pioneiro na criação do que hoje conhecemos como estampas afro-baianas, Pitta usou símbolos, ferramentas, indumentárias e adereços dos orixás como fontes de inspiração. Antes do Cortejo, ele passou pelo Olodum, entre 1984 e 1997, e não apenas deu destaque à cultura africana, mas também à cultura indígena.
Foto: Divulgação | @apita73
Tudo começou seis anos após o primeiro desfile do Ilê Aiyê, em Pirajá, quando Pitta estreou com a estampa do afoxé Unzó de Obá Xireê. Há 40 anos, suas estampas marcam a identidade dos blocos negros e indígenas, com cores que ecoam por toda a Bahia. Segundo ele, tudo começou com um único desejo: fazer uma releitura de tudo o que ele e outros haviam criado no Carnaval.
E foi no meio da folia que Alberto Pitta escreveu o livro "Histórias Contadas em Tecidos", onde se dedica a entender e explicar a história do Ilê Aiyê, além de diversos blocos como Apaches do Tororó, Araketu, Malês, Filhos de Gandhy, Muzenza, e muitos outros que, por meio de seus tecidos, fazem e fizeram história na cultura negra soteropolitana. Hoje, Salvador conta com 132 blocos afros desfilando nos circuitos Dodô, Osmar, Pelourinho e até em bairros do Subúrbio.
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