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Consciência Negra na educação: com 'Afrobeto', professora de Salvador leva referências africanas para a sala de aula

Metodologia criada pela professora Bianca Barreto ganhou espaço e livretos em braile

Por Juana Castro

Consciência Negra na educação: com 'Afrobeto', professora de Salvador leva referências africanas para a sala de aulaProfessora Bia Barreto com exemplares do Afrobeto | Crédito: Juana Castro/Aratu On

Pela primeira vez, o Dia da Consciência Negra, celebrado nesta quarta-feira, 20 de novembro, é feriado nacional. Para marcar a data, o Aratu On deu início, nesta semana, a reportagens especiais que destacam personalidades negras com atuação em diferentes áreas: política, saúde, educação, esporte e cultura. Até sexta-feira (22), você vai conhecer histórias e experiências pessoais, além da importância do trabalho que elas desenvolvem para a sociedade. 


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“A” de “amor” e “B” de “baixinho”? Pode até ser, mas graças à iniciativa de uma educadora soteropolitana, o abecedário ganhou novas referências. É “A” de “acarajé”, “atabaque”, “agogô”, “B” de “berimbau”, “banguela”, “C” de “caxixi”, “cachimbo” e assim por diante. Palavras que vêm de África. 


Trata-se do Afrobeto, criado por Bianca Barreto, ou apenas “Pró Bia”, de 31 anos, que, apesar da pouca idade, possui um currículo extenso. É formada em Educação Física e Engenharia de Produção, mestra em Educação, doutoranda em Dança, técnica em Refrigeração Industrial, musicista e gestora cultural. Ah! “E pedagoga honoris causa, segundo meus alunos”, diz em entrevista ao Aratu On.


Ela explica que o Afrobeto surgiu como uma forma de enfrentar o racismo na educação básica, “pensando em alfabetizar e africanizar” e, embora esteja disponível em livreto impresso, é mais que um recurso afrodidático, como diz Bia. “Afrobetizar é uma metodologia”, reforça. Metodologia essa, inclusive, que ganhou o Prêmio Educador Transformador do Sebrae 2024 e tem aberto portas para a profissional.


Para entender melhor essa história, é preciso voltar um pouco no tempo, quando Bia não era “pró”, e sim estudante.


“Enquanto menina/mulher negra, eu não cabia nos espaços educativos, em geral. Tenho tenho 31 anos e, se a gente pensar, em 1993, os livros não traziam mulheres negras nos seus recortes. As histórias não traziam mulheres negras inspiradoras”, fala. “Minha mãe não queria ter filha mulher, porque ‘mulher sofria muito’! Meu pai não queria ter uma filha negra, porque negro sofre racismo. Então é desse lugar que eu parto”, acrescenta.


O pai de Bia é negro, mas ela conta que foi a primeira da família a se reconhecer e se autodeclarar negra: “Até a minha chegada, eram todos ‘morenos’, ‘pardinhos’, ‘cor de cravo e canela’. Ninguém queria ser negro. E a gente entende o porquê”.


Os questionamentos vieram cedo, quando, mesmo sem saber o motivo, à época, não aceitou que deveria “agradecer à princesa Isabel” em uma peça da escola, por exemplo. 


Bia cresceu e os questionamentos a acompanharam. Ingressou no curso de Educação Física da Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 2011, aos 17 anos, e percebeu que, mesmo com atualizações na legislação - para garantir o ensino da “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” nas escolas -, não havia nada na ementa que desse suporte para tal. 


“Como o currículo era inovador se não falava de questões étnico-raciais?”, perguntou-se. Desse ato de perguntar e ao reconhecer a falha na licenciatura, trouxe também formas de pensar o currículo do curso na monografia do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).


Depois, na especialização em “Atividade física e saúde no contexto da Educação Básica”, viu como o racismo determinava a saúde e trouxe outras formas de abordar as questões raciais. 


O primeiro recurso afrodidático, contudo, veio no mestrado: o jogo da memória “Enegrecendo a história: Mulheres Negras na Memória” - no qual uma carta com imagem faz par com outra com texto sobre aquela personalidade -, disponibilizado na plataforma EduCAPES. “Entendi, ali, que tenho facilidade em criar jogos, livretos e, assim, veio o Afrobeto”, pontuou.


O poder do lúdico


Foram seis semanas de trabalho em sala de aula para chegar ao primeiro livreto. Nesse tempo, a professora esbarrou em dificuldades, muitas vezes, trazidas de casa pelos alunos.


“Não é difícil encontrarmos situações de intolerância religiosa, principalmente em épocas específicas do ano, quando a gente traz balinha, chocolate… Sempre tem aquele aluno que vai dizer ‘não coma, porque pode ser do diabo’, ou ‘não coma porque está envenenado’”, conta Bia. “Por mais que sejam meninos de fundamental 1, coloco para conversar e eles falam muito que podem confiar na pró, porque a pró não briga”.


“O Afrobeto vem de uma atividade que é perguntar, em casa, coisas que vêm de África e estão no nosso cotidiano. Alguns voltam com respostas, outros vêm com ‘minha mãe não deixou’ ou ‘minha religião não permite’”. Bia, então, devolve: “sua religião não permite que você pesquise?”. A atividade ia voltando até chegar ao primeiro escopo.


“Eu poderia ter entregue para eles apenas um vocabulário, mas a ideia do pesquisar é entender, primeiro, que pesquisa não se faz apenas na internet. É também valorizar os mais velhos - porque muitos trazem as falas dos avós, tios…”, lembra.


Depois de um trabalho árduo, a educadora quis torná-lo palpável. Ao retornar do fim de semana, levou a 'primeira edição' e encantou os pequenos, que se empolgaram e pensaram em diversas formas de continuar aquele material.


“Uma turma montou o livreto comigo, outra fez o ‘banquete do Afrobeto’ e, todo ano, esperam um Afrobeto novo”, revela. Mas o material, reitera, não é 'um livreto que afrobetiza crianças. É uma iniciativa que nasce com crianças para afrobetizar o mundo'.


“Se perguntarmos para outra pessoa negra uma coisa que venha de África, a pessoa pode travar, porque não fomos educados para isso”, reflete a professora.


Versões


A iniciativa deu tão certo que pró Bia não parou. Hoje, ela tem exemplares do Afrobeto em braille para trabalhar o sensorial das crianças - e não somente das que possuem alguma deficiência visual -, para que entendam que existem diversas formas de se comunicar. “É preciso pensar na inclusão o tempo todo. Não é porque não foi oferecido para mim que não posso oferecer aos meus estudantes”, frisa. 


A movimentação foi tão grande que a prefeitura enviou para a escola uma antiga máquina de escrever em braille. “Os meninos estão aprendendo. Já montam as letras, os nomes deles, o meu, os que estão no Afrobeto. A ideia é que possam interagir. Trago já traduzido e eles podem colocar miçanguinhas, massinha de modelar”, explica. “Claro que tem coisas específicas, como acentuação, que eles ainda não sabem, mas já sabem identificar todas as letras do alfabeto e quando estão maiusculas ou minúsculas. Acaba se tornando um ‘jogo da memória’ pra eles”, completa.


Há outra situação vivida pela pró Bia: os alunos com transtorno do espectro autista (TEA) preferem materiais maiores. Um deles, lembra a professora, pediu para que o irmão passasse da folha A4 para uma cartolina. “Engraçado foi o relato pra mim: ‘não, pró… a senhora já me deu maior, é que eu queria maior ainda’”, conta, divertindo-se. “Ele teve o cuidado de dizer que a professora já estava fazendo o que podia, mas pensou em como ficar bom para os dois ao mesmo tempo”.


Há, ainda, a 'Caligrafia Afrobetizada' para alunos menores, de 4 a 5 anos, que ainda estão no processo de aprender a ler, com desenhos e outras atividades, e a 'Colorigrafia', que é o resumo da caligrafia em um kit que vem com lápis de cor.


“Tem desenho de caxixi, berimbau, atabaque… Tudo afrorreferenciado, relacionado às nossas matrizes africanas. ”, afirma.


A mais nova derivação do material foi lançada neste ano, o 'Afrobeto de Sabores', feito com os alunos de 4º e 5º ano. Além do glossário com comidas vindas de África, também contempla receitas com relatos de cada família.


“Eles já usam o Afrobeto para pensar outras disciplinas. Podem ver gêneros textuais (língua portuguesa), unidade de medida (matemática), geografia - ao pensarem de que lugar de África vem esse alimento, ou ‘vem de África mesmo?’, como o caso da pipoca, que os africanos aprenderam aqui, com os indígenas, a estourar o milho”, analisa.


Para a pró Bia, falar sobre esses temas com crianças é “pensar nossa história de uma forma mais amável; é pensar África de um lugar que cura e não só do lugar que dói, de onde as pessoas foram tiradas e sofreram epistemicídio e memoricídio”.


“Hoje, se você perguntar a um aluno que passou pela pró Bia qual a primeira coisa que ele pensa ao falar de África, ele não vai mais responder que são meninos que passam fome, locais de muita seca, pobreza. Hoje, eles entendem que em África tem reis e rainhas, que há riquezas”, garante. “Os alunos querem meu búzio, porque sabem que isso já foi moeda de troca. Outro dia fui dar aula com um brinco com búzios em toda a minha orelha, aí um deles olhou pra mim e falou: “hum, essa escuta hoje tá cara, né?”, lembra, aos risos. “É começar a criar novas relações com algo que nos foi tirado. É uma delícia, sou apaixonada!”, completa.



‘Educação física não é na quadra?’


Diante de toda a transformação que a professora Bia Barreto vem realizando junto aos alunos, não é incomum surgir a dúvida: ela faz tudo isso sendo professora de educação física? E a resposta é sim. Isso porque, segundo a pró, por muito tempo se cultivou a cultura de que a Educação Física fosse vista apenas como 'a disciplina da quadra', o que ela desmistifica na prática.


“A Educação Física tem como objeto de estudo a cultura corporal. Mas o que não é cultura corporal?”, questiona. “O Afrobeto nasce na Educação Física como uma ferramenta pedagógica, mas do lugar das corporalidades afrodiaspóricas”.


E o que são corporalidades diaspóricas? “A dança, as lutas e até se alimentar. Nada melhor que o próprio caruru, recentemente tombado como Patrimônio Cultural da Bahia, pra gente falar de uma comida feita a várias mãos e que alimenta tanta gente. Isso é corporalidade afrodiaspórica. São os movimentos que a gente faz no nosso dia a dia, com o nosso corpo, para se inserir na sociedade”, explica.


Sem esconder o orgulho dos alunos, complementa: “Os meus pequenos dizem que ‘a educação física da pró começa na cabeça’. Mas, na prática, qual é o movimento que a gente faz que não começa na cabeça?”, indaga.


Tudo é trabalhado de forma “muito tranquila”, de acordo com Bia. “Já tive o tempo de brigar. Hoje não mais. Já houve um período da Educação Física tecnicista, mesmo. Vivemos, inclusive, um período de pensar que o corpo em movimento não era para o povo preto. Então trago a disciplina de um lugar antirracista, que dialoga com várias outras áreas”.


Para ela, Educação Física e Engenharia de Produção, suas duas áreas de formação, cruzam-se ao falar sobre academias públicas de aço inox implantadas recentemente em Salvador, por exemplo. Foi, inclusive, tema que estudou em 2018. “Se boa parte da população não tem acesso a uma academia particular, o mínimo é que a academia pública esteja em bom estado de funcionamento”.


“Também cruzo a Educação Física com refrigeração industrial quando digo que nossos corpos só conseguem entregar o melhor se eles estão em ambientes minimamente agradáveis. Como é que eu vou querer que um estudante de escola pública entregue para mim o melhor na prova do Enem se eu coloco ele na sala que não está climatizada, se eu não penso ergonomicamente aquela cadeira para acolher aquele estudante?”, continua.


“O conhecimento foi segmentado, antes, como uma estratégia para que a gente não conseguisse dialogar. Aí a pró Bia chegou para conversar de outro jeito!”, fala.


Dinâmica nas escolas


“A gente não precisa separar teoria e prática. Assim como os livretos trazem uma forma de afrobetizar e africanizar, é pensar que todo o conhecimento pode acontecer de uma forma mais leve, mais lúdica e mais agradável”, defende Bia. 


Ela conta que as aulas na quadra também são espaços para mais conteúdo, unindo brincadeira e regras. É possível, por exemplo, sair da quadra para desenhá-la, e aí são trabalhados assuntos como lateralidade, relação com espaço, tempo, figuras geométricas, entre outros. “Aparece cada quadra! Já falei pra eles que vou fazer uma exposição com as quadras que eles desenham”, diverte-se.


Outra proposta é a afrogincana, onde todo o conteúdo trabalhado no ano é cobrado em tarefas das quais ela atua como mediadora. As equipes precisam entregar, em determinado tempo, respostas como “me apresente um representante da população negra que mudou o Brasil”. É uma competição e, quando esgotam o conhecimento 'de fora', recorrem às referências da escola ou da família. 


Pró Bia diz, ainda, que os pequenos 'conhecem os pontos turísticos de Salvador com o corpo', representando estátuas. “É muito engraçado o menino que nunca foi no Elevador Lacerda tentando imitar. O Dique do Tororó? Sai cada Orixá! Balançando! Onde você viu estátua balançando?”, fala, aos risos. “A gente vai caminhando do lugar do corpo que constroi o conhecimento”.


Educação antirracista


Para a professora soteropolitana, é fundamental que o conhecimento afrorreferenciado atinja tanto alunos negros quanto os não negros, seja em escolas públicas ou particulares.


“A gente não constrói uma sociedade antirracista matando todos os brancos. Se ‘tocar fogo’ em todos os racistas, talvez sobrem pessoas que nem aprenderam a lidar com pessoas diferentes. A gente coabita esse planeta para tentar fazer algo melhor. A maneira que a sociedade se construiu a gente já viu que não deu certo”, observa. 


“Só consigo dialogar com esse pessoal se eu trouxer um lugar de formação. E se, desse lugar de formação, a escolha ainda é ser racista, aí ela vai lidar com as consequências na forma da lei, mas não posso não oferecer ao meu aluno não negro a oportunidade de ser antirracista. Muitas vezes essa criança não negra vai acessar espaços que o meu aluno negro não acessa, e quando ele chega nesses espaços e leva o Afrobeto com ele, ele é quem afrobetiza ‘meio mundo de gente’”, reflete Bia.


“O Afrobeto chega na casa da mãe evangélica que disse que o menino não podia fazer a pesquisa porque a religião não permitia. Esse afrobeto que chegou com a criança afrobetiza também os pais, a família, a comunidade… Eles começam a olhar para terreiros como um lugar de aprendizado e conhecimento, aí eles entendem que construir a sociedade é papel de todos, independente da cor da pele, independente da nossa história, inclusive”, completa.


Por mais que “pensar o racismo” seja “sempre muito doloroso”, a professora acredita que existem formas de falar das dores pensando na superação. 


“Como a gente tem lidado com as nossas questões? Como a gente tem colocado as nossas dores no mundo? As minhas eu tenho transformado. E o transformar é acolher do meu aluno branco ao meu aluno negro. Eu não tenho que deixar de acolher. É dar aula de Educação Física de forma afrorreferenciada na escola pública, mas também na escola particular mais cara de Salvador. Meus alunos têm acesso à professora de excelência independente de estarem pagando ou não. E quando a gente começa a colocar os nossos princípios à frente dos nossos desejos, a gente consegue fazer esse diálogo de um jeito mais maleável”, conclui Bia.


Atualmente, pró Bia dá aula na Escola Municipal da Cidade Nova, em Salvador, para crianças menores, e em São Francisco do Conde, no Centro Educacional Joaquim Alves Cruz Rios, para alunos do fundamental 2. Ela também é monitora de uma disciplina intitulada “Educação e Comunidade de Terreiro” na UFBA, dentro do doutorado em Dança. Além disso, trabalha com formação de professores e em empresas.


“Tenho adultos pensando o Afrobeto em vários terreiros. Não só nos de candomblé, mas o terreiro como lugar de assentamento”, pontua. “Do mesmo jeito que os colonizadores utilizaram de um processo de afrobetização para nos catequizar, hoje a gente utiliza de uma metodologia de afrobetizar para alfabetizar e africanizar não só as nossas crianças, mas qualquer indivíduo que pense a construção de uma sociedade antirracista”.


Bia ainda destaca: “Não é sobre querer ou não querer falar sobre as questões étnico-raciais, é sobre fazer cumprir a lei - e ano que vem a gente vai ter lei nº 14.986, que obriga a tratar das heroínas negras que fizeram a história do Brasil, então acho bom o pessoal se atualizar”.


Por fim, a professora revelou o sonho de ter seu próprio espaço de educação, formal e não formal, para acolher crianças e adultos. “Acredito que a escola é um lugar de aquilombamento. Muitas vezes, na esfera pública, a gente não consegue dar conta de tudo, assim como na particular. Quem sabe uma ONG para organizar algo? Tenho pensado. O que não dá é pra gente parar”, conclui.


E qualquer dúvida… “chama a pró!”.


Leis abordadas nesta matéria:


Lei nº 11.645/2008 -  Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.


Lei nº 14.986/2024 - Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para incluir a obrigatoriedade de abordagens fundamentadas nas experiências e nas perspectivas femininas nos conteúdos curriculares do ensino fundamental e médio; e institui a Semana de Valorização de Mulheres que Fizeram História no âmbito das escolas de educação básica do País.


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