Ato religioso busca preservar memória de possível cemitério na Pupileira
O local é apontado por pesquisadores como possível área de um cemitério para escravizados
Por Bruna Castelo Branco.
Um ato interreligioso será realizado na próxima quarta-feira (14), às 10h, no estacionamento da Pupileira, em Salvador. O local é apontado por pesquisadores como possível área do primeiro cemitério público da capital baiana, onde teriam sido enterradas pessoas historicamente marginalizadas, como escravizados, pobres, indigentes, prostitutas, suicidas, excomungados e condenados à morte.
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Aberto ao público, o evento visa preservar a memória e a religiosidade dos sepultados no local, além de promover o respeito entre diferentes manifestações religiosas. Caso vestígios do cemitério sejam encontrados, o local poderá ser transformado em um memorial para os mortos.
A decisão foi tomada após uma reunião realizada na última quinta-feira (8) pelo Ministério Público da Bahia (MPBA), por meio do Núcleo de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (Nudephac), das 4ª e 5ª Promotorias de Justiça do Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo da Capital, e da 1ª Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Capital.
“Uma vez confirmadas as informações das pesquisas, estaremos diante de uma descoberta de magnitude inédita, possivelmente o maior cemitério de pessoas escravizadas de toda a América Latina. Trata-se de um achado que resgata a nossa história e memória, permitindo, mesmo após tantos anos, uma reparação histórica à dignidade dessas pessoas”, afirmou a promotora de Justiça Lívia Sant’Anna Vaz.
Participaram do encontro pesquisadores e representantes de diversas religiões, entre eles a arqueóloga Jeanne Dias, o advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Samuel Vida, a arquiteta e pesquisadora Silvana Olivieri, além de lideranças religiosas. A reunião teve como foco discutir os impactos de uma possível pesquisa arqueológica no local e formas de garantir respeito à memória dos sepultados.
Cemitério de escravizados
A localização do cemitério, chamado "Cemitério do Campo da Pólvora", foi identificada durante uma pesquisa de doutorado realizada por Silvana Olivieri, pesquisadora no programa de pós-graduação da faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Ufba.
Por meio de comparações entre mapas antigos e fotos de satélite atuais, ela localizou o ponto exato do espaço, próximo à entrada da Pupileira. Registros históricos indicam que, além de escravizados, indígenas, membros da comunidade cigana e pessoas sem recursos financeiros eram sepultadas neste cemitério. O número de corpos enterrados na área ainda é desconhecido.
Em um dossiê, Silvana levantou que os primeiros registros do uso de banguês, uma espécie de maca para transportar cadáveres, pela Santa Casa de Misericórdia da Bahia, são de 1693. Para a pesquisadora, é possível que a instituição utilizasse esse instrumento para levar os corpos para sepultamento no cemitério do Campo da Pólvora.
Inicialmente, o cemitério foi administrado pela Câmara Municipal de Salvador e, depois, passou a ser responsabilidade da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Registros históricos apontam que o local funcionou por cerca de 150 anos, até 1844, quando foi substituído pelo Cemitério Campo Santo, no bairro da Federação.
"Segundo o historiador João José Reis, inicialmente o cemitério funcionou sob jurisdição da Câmara Municipal. Várias posturas do começo do século XVIII mencionam que servia para o sepultamento de 'negros pagãos', escravizados que não foram batizados no catolicismo, frequentemente abandonados na porta das igrejas, em terrenos baldios, matas e praias. A Câmara se preocupava em enterrá-los apenas para não causarem 'corrupção dos ares' ou os 'cães despedaçarem os corpos como se tem achado várias vezes'. Os sepultamentos desses africanos eram feitos pelos responsáveis da limpeza pública, equivalendo a 'remoção de lixo'", escreveu ela.
A descoberta foi apresentada à Santa Casa em setembro, durante reuniões que também contaram com a presença do Iphan, mas sem respostas concretas. Em dezembro, Silvana e Samuel Vida, recorreram ao MP-BA, que tem atuado como mediador. A primeira reunião com a presença de todas as partes ocorreu em 9 de janeiro, e, em 29 de janeiro, a Santa Casa também participou.
De acordo com os estudos de Silvana, entre as dezenas, talvez centenas de milhares de pessoas enterradas na região, estão líderes da Revolta dos Búzios e da Revolução Pernambucana, além de dezenas de participantes da Revolta dos Malês, todos tratados "com o maior desprezo e abandono possível", como escreveu a estudiosa.
"Os sepultamentos eram realizados em valas comuns e superficiais, geralmente em condições bastante precárias e indignas, sem nenhuma cerimônia religiosa ou rito fúnebre. Em maio de 1844, após ser desativado, o velho cemitério da Santa Casa, primeiro cemitério público de Salvador, sofreu um apagamento histórico, desaparecendo tanto da paisagem visível como da memória da cidade", finaliza a pesquisadora.
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