Quando sinto, existo: palavras sobre o necessário letramento do sentir
Nesses 11 anos de prática e pesquisa, atuando como psicóloga, posso dizer que começo a fazer algumas inferências mais consistentes sobre o que nós chamamos de subjetividade humana. Escutei pessoas em hospitais, nas ruas, em escolas, universidades e na clínica. Olhar uma pessoa por dentro é o meu ofício, eu trabalho com a intimidade e a confiança, afinal, ninguém abre a sua biografia e expõe as suas sombras se não houver um solo seguro pra isso. Nesse oficio da escuta, eu já mediei processos de elaboração de luto, psicopatologias densas e comprometedoras, já vibrei com grandes conquistas, já vi muitos choros, já chorei e já sorri. Vi na minha frente crianças, adultos, senhores e senhoras. Trabalhei em leito de UTI neurológica, vi pessoas em estado de coma, atuei com crianças na escola e mediei processos de abandono completo da dependência do cigarro.
Já vi muito, senti muito, estudei e pesquisei muito. Mas, de tudo isso, uma função ou símbolo permeia todos esses encontros: o afeto. As pessoas sentem - e sentem muito. Ouso dizer que todo mundo é sensível, todo mundo possui a epiderme delicada, predisposta ao afeto, ao cuidado, ao olhar do outro. Exceto as pessoas que se construíram e foram forjadas para “não sentir”. A sensibilidade é um processo biológico, mas também uma função psicológica básica. Sim, algumas pessoas se forjam em uma espécie de anestesia emocional, uma atonia relacional e isso é resultado de diversos fatores, sendo o seu extremo o Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS), em que não há interdito ético ou moral que seja internalizado pelo sujeito. Assim, a pessoa simplesmente não sente culpa, remorso ou pesar. Longe de querer biologizar a maldade, trago a compreensão da tipologia da psiquiatria só como um lembrete: sim, existem pessoas que “não sentem”, ou não sentem da forma como a maioria de nós sentimos. É como se a empatia não fizesse parte do repertório dessas pessoas. Elas buscam violentamente a realização dos seus desejos, pulsões e satisfação dos seus prazeres e metas. Essas pessoas são manipuladoras, dissimuladas, impulsivas, frias e podem ser capazes de atos de violência permeados de perversidade e crueldade. Esse “transtorno” é, antes de tudo, uma patologia do social. Ele é uma espécie de denúncia dessa nossa civilização.
Pois bem, voltando agora pro campo do afeto, quero trazer a ilustração de um filme muito conhecido, produzido em 2001, o “Fabuloso Destino de Amélie Poulain”, dirigido por Jean-Pierre Jeunet. Esse filminho lindo conta a história subjetiva, emocional e sensorial de uma jovem francesa. A história começa em 1973, quando Amélie é uma criança. O seu pai era um médico militar, que mantinha com ela uma relação fria e muito distante. Sua mãe era extremamente irritável, colérica e nervosa. Amélie, apesar de tudo, consegue construir um mecanismo de adaptação ativa a esse ambiente familiar tão estranho, frio e até amedrontador. Ela desenvolve uma imaginação muito potente e criativa, além de estabelecer uma relação sensorial com o mundo de muita investigação, prazer e experimentação. Ou seja, Amélie é quase uma sobrevivente e uma alquimista das próprias emoções. De tudo o que ela viveu com o pai, uma cena se repetia e isso determinou muito da sua biografia: quando o pai ia realizar o exame de auscultar o seu coraçãozinho, ele disparava de emoção. Ela ficava tão emocionada de sentir a presença do seu pai, com o gesto de chegar mais perto do seu coração, que seus batimentos cardíacos aceleravam. Com isso, seu pai e sua mãe passaram a acreditar que ela tinha uma doença cardíaca, fazendo com que ela tivesse uma infância com poucas experimentações de sociabilidade, intensificando assim a criatividade do seu mundo interno.
Amélie foi uma criança que sentia afeto, emoções, sensações e sentimentos. Ela sentia tanto que foi diagnosticada com uma doença que, na realidade, não existia. O que existia era afeto, amor e vínculo. Ou melhor, o que existia era seu desejo e necessidade de ser amada, ser cuidada e ser vista. Quero, com isso, trazer uma compreensão que venho percebendo e olhando com toda atenção ao longo desses onze anos de atuação enquanto psicóloga e educadora: nossa matéria existencial mais importante é o afeto. É sobre o que sentimos pelas pessoas e pelos seres, é sobre vínculo, sentimentos, emoções e sensações. Está aí, nesse solo, a origem de muitos sintomas, doenças e psicopatologias, assim como é nesse mesmo solo que está a cura, a terapêutica, os unguentos e bálsamos necessários para essas mesmas feridas. É "o sentir" o maior e mais importante campo do meu trabalho.
Emoções, sentimentos e sensações nos movem muto mais do que nós imaginamos. O nosso ideal de racionalidade e intelectualidade são, muitas vezes, só ideais. O que nos impulsiona e movimenta na vida é o que sentimos por nós mesmas, pelo outro e pelo mundo. O campo emocional é mesmo esse território fluido, espontâneo, natural, difícil de colocar bordas, desafiante para os que querem conduzir e milimetrar sua atuação. Assim como Amélie, nós não temos total controle dos nossos batimentos cardíacos. Nós podemos, sim, manejar e modelar nosso comportamento, nossa feição e nossas ações, mas o afeto, mesmo, como água, nos escapa.
Saúde mental é, antes de tudo, saúde emocional. Não tem como fugir dessa realidade. O trabalho da psicologia é, antes de tudo - e com tudo -, um trabalho nos solos do sentir. É de lá que nós viemos e é para lá que nós voltamos. Os nossos registros emocionais têm o poder de nos conectar com estados motivacionais comportamentais potentes para a realização, com fobias sociais, com o estado de prontidão para desbravar um novo projeto ou com a dolorosa realidade de quem não consegue sair da cama durante dias. Não posso e não devo esquecer de dizer que todo afeto é também uma construção sócio-histórica. Nós aprendemos a sentir a partir das matrizes do nosso sistema familiar nuclear, ou dos adultos de referência que tiveram a tutela da nossa infância, mas nós também aprendemos a sentir através dos modos de subjetivação do modelo de sociedade em que vivemos, no nosso caso, o modelo neoliberal de sociedade. Tudo nos ensina a sentir o tempo todo e não só a raciocinar.
Como Amélie, nós não controlamos nossos batimentos cardíacos, nós simplesmente sentimos e esses sentimentos fazem parte da construção de vínculos. Ou seja, a depender da forma como um vínculo é construído e dos seus modos de operar, vai se criando um modo de sentir. Padrões de comportamentos geram padrões de emoções e sentimentos e vice versa.
Existe uma espécie de pedagogia do sentir e nós precisamos nos alfabetizar nesse letramento. Enquanto a gente mantiver esse suposto lugar de onipotência dos pensamentos, do racional e da intelectualidade, nós estaremos guiando um timão de algodão em alto mar revolto. Quando nós reconhecemos, respeitamos e nos relacionamos com nossa realidade emocional, nós podemos segurar esse timão e ir minimamente guiando o barco, sabendo sempre que, no fundo, são as marés que nos guiam. Portanto, sentir é matéria prima e obra prima da mais valia do nosso ser. Que o conto do imperativo da racionalidade, tantas vezes repetido, possa ser minimamente questionado. Como Paulinho da Viola nos ensina: “não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar".
Que a gente possa navegar em nossas águas do sentir, com respeito, cuidado e consciência. Sabendo que toda emoção e sentimento são, no fundo, intraduzíveis. Mas é mesmo o nosso oficio essa poética tentativa de tradução. No mínimo, uma ilustração...
*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Aratu On.