Pari Passu: quando vincos e vínculos andam lado a lado em uma grafia do afeto
Nós sentimos e sabemos a importância das relações afetivas em nossas vidas. Digo afetivas porque sabemos também que nem toda relação tem como base o afeto – existem relações estritamente trabalhistas, relações burocráticas, relações comerciais. Mas mesmo nessas circunstâncias o afeto estará presente, de algum modo, porque somos seres emocionados, por natureza. Nós sentimos as coisas, para além de pensarmos e vermos elas.
Nós não deixamos a emoção de lado quando entramos em um ambiente ou encontramos com determinada pessoa. A emoção sempre estará presente, mas o que fazemos com ela que é a questão. A condução cognitivo-comportamental das emoções é um manejo que todas nós executamos várias vezes em um só dia. Não quero aqui me aproximar das discussões psicopatológicas acerca das pessoas "que não sentem empatia", que hoje são denominadas pela psiquiatria de Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS/CID F60.2), os antigos sociopatas. Essa é uma discussão que merece um nível profundo de comprometimento ético e político, para além de biomédico.
Quero aqui falar sobre vincos e vínculos. Vincos são essas datilografias do tempo em nossa pele, o côncavo que anuncia e denuncia o tempo vivido. Sãos nossas profundidades dialogando o tempo todo com nossas superfícies, é o deus Chronos toda hora anunciando a sua existência altiva, perene e serena. Nossos vincos são os registros biológicos que nos fazem ver a realidade natural e inquietante do corpo que envelhece e morre, o corpo orgânico, não sintético, não plástico, não liso, mas vivo. Estar viva é estar em relação, por isso, os vincos andam lado a lado com os vínculos, de mãos dadas, um entrando no outro, um se misturando com o outro, fundindo-se nesse nosso corpo-território.
Quando nós vivemos histórias de longo prazo, nós sentimos que o tempo de vínculo por si só, forma vincos entre nós e a pessoa. Os vincos compartilhados nos vínculos são a fina flor do afeto, da história do relacionar-se. Pobres dos que não sabem ou não tem recursos para cultivar vincos e vínculos. Esses fios de afeto, esses traços do tempo, são o que existe de mais precioso nessa história que é existir. Sabemos que são muitos os estudos e pesquisas longitudinais que já confirmam a realidade de que as amizades e os vínculos de afeto são um fator preditor de qualidade de vida e saúde. Uma amizade pode literalmente salvar uma vida, um abraço pode salvar um dia, um olhar pode curar uma ferida, um gesto gentil pode abraçar e libertar uma alma, uma palavra com intenção genuína de amor pode ser a própria revolução para aquela pessoa, naquela hora.
O tempo todo e a todo momento, de forma ininterrupta, nós estamos sentindo a nós mesmas, os outros que estão perto ou longe da gente, os ambientes, as memórias e imagens que surgem dentro de nós. O sentir, permeia e compõe as nossas outras linguagens, as emoções e sensações sempre depositam uma camada de memória e força em nossos processos psicocomportamentais.
A construção de vínculo é sempre mais trabalhosa que a rápida e efusiva configuração da afinidade. Vinculo dá trabalho, exige presença, persistência. Afinidade é quase um passe de mágica, é instantânea, mas do mesmo jeito que chega forte e rápido, pode se esvair e se dissolver em questão de dias, ou horas. Vínculo é o que está atrás da afinidade e têm vínculos que nem tem como base a afinidade imediata, mas outras coisas, outros fios que vão sendo tecidos em outros lugares. Dizem por aí que no momento da morte, as únicas coisas que nós nos lembramos são as pessoas e as sensações. Nós nos lembramos das histórias, das cenas embebidas de coisas sentidas, de coisas olhadas, tocadas, faladas, cheiradas, degustadas. O nosso sistema sensorioafetivo é intensamente importante para nosso mecanismo de criar memórias, de não deixar escapar, de poder revisitar, de não deixar sumir. É por isso que nós lembramos de cenas de lá de trás da infância e não sabemos porque ela ficou em nossa memória, é porque elas estão cheias de vincos e vínculos, cheias de emoção, transbordando sensações, sentimentos que surgem a partir dos vínculos entre a gente e as pessoas, entre a gente e os ambientes.
Eu sinto que um dos caminhos mais sábios para o viver e envelhecer, é saber que nossos vincos são bem-vindos e eles são a matéria fina derivada dos vínculos que formamos na vida. Que triste seria se minhas histórias não deixassem em mim a suas grafias, os seus jeitos de escrever em meu corpo tanto afeto, tanta coisa sentida. Que a gente possa, nessa excitante porosidade, perceber as nuances e degradês que habitam nosso corpo, como grafias do afeto.
O sentir é o fio dourado que nos conecta com a nossa humanidade e nos protege da barbárie, o envelhecer é o registro escrito em nossos corpos do tempo vivido e mais do que isso, dos tempos sentidos.
Vincos e vínculos são mesmo grandes amigos, andam lado a lado, cada um no seu ritmo, cada um no seu passo, mas sempre lado a lado. Como diz minha avó, pari passu.
*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Aratu On.