Cidadania

Ninguém é só uma coisa: o Brasil das muitas profissões

Salim Khouri
Colunista On: Salim KhouriEspecialista em transformações organizacionais e individuais
MulticarreirasFoto Original: Fabio Audi / Variações feitas no Gemini

Carlos acorda cedo, pega o ônibus lotado e segue para o polo industrial da cidade. À noite, ajuda o pai no bar da família. No fim de semana, dá aula de inglês como voluntário em uma creche.

Silvia é advogada e passa o dia no escritório, mas, quando chega em casa, liga o celular, grava vídeos sobre moda e ainda presta consultoria de imagem para algumas marcas parceiras.

Carla é cozinheira. Cada dia prepara um menu diferente em uma casa, administra um buffet infantil nos fins de semana e, todas as noites, senta para estudar nutrição.

O que essas pessoas têm em comum? Elas estão vivendo aquilo que eu chamo de multicarreiras: a capacidade de atuar em diferentes frentes, ao mesmo tempo, criando renda, sentido, conexão e uma identidade profissional que não cabe em uma caixa só. Nada disso é “modinha”. É a vida real do Brasil. É a vida real de quem acorda e decide que não vai se limitar ao que está escrito na carteira de trabalho. E é curioso observar como, do outro lado, cresceu uma onda nas redes zombando de quem é CLT, que isso é coisa do passado. Não vou entrar nesse trend agora.

Quando fui buscar referências históricas sobre multicarreiras, encontrei quase nada. Em inglês aparece como multiple careers, mas a prática já acontece há décadas nas periferias, nas comunidades, nas pequenas cidades, na vida de quem sempre teve que se virar. O mundo corporativo agora está apenas falando o que o Brasil sempre soube: ninguém é uma coisa só.

Vamos voltar um pouco para entender como chegamos até aqui. O trabalho não nasceu do jeito que você conhece. Durante muito tempo, trabalhar significava força física, repetição e obediência. A Revolução Industrial colocou as pessoas dentro de fábricas, seguindo horários rígidos, tarefas quebradas em pedacinhos e pouca autonomia. Só nas décadas de 1920 e 1930 começou a nascer outra ideia: a de que gente é gente, não engrenagem. Que pessoas têm desejo, criatividade, medo, limites, potencial. E que tudo isso impacta diretamente na forma como trabalham.

Mesmo assim, seguimos presos por muito tempo à lógica do “estude, escolha uma profissão, fique nela para sempre”. Uma ideia que fazia até algum sentido no passado, mas que hoje não acompanha o ritmo da vida.

Por que a ideia de 'uma carreira só' ficou velha

O mundo mudou tanto que uma carreira já não dura mais vinte anos. Às vezes, não dura nem cinco. A tecnologia avança, as empresas mudam, a economia vira de ponta-cabeça e nós precisamos acompanhar. A ONU estima que uma pessoa terá entre 10 e 14 empregos até os 38 anos. Não porque ela é instável, mas porque o mundo é. E aí entra o ponto central: se tudo muda, por que você deveria ser uma versão única e fixa de si mesmo?

O surgimento das multicarreiras

Multicarreira não é ter “bicos”. Não é ser indeciso. Não é falta de foco. Multicarreira é reconhecer que você pode ser mais de uma coisa ao mesmo tempo. É ter diferentes fontes de renda, diferentes formas de expressar talento, diferentes jeitos de existir no mundo. É possível ser: professor e empreendedor, advogada e criadora de conteúdo, cozinheira e estudante, analista e artesã, engenheiro e músico, psicóloga e dona de um brechó, agente de call center e maquiadora profissional.

No fundo, estamos falando sobre liberdade. Sobre não deixar que uma profissão defina a sua vida inteira. Sobre não sufocar partes de você que querem respirar. Mas por que isso importa tanto agora? Porque o trabalho ocupa um espaço emocional muito grande na identidade das pessoas. Para muita gente, trabalhar sempre foi sinônimo de reconhecimento e sobrevivência. E isso não vai mudar da noite para o dia. Só que agora existe um convite que a tecnologia está fazendo para o mundo inteiro: reinvente-se. E aqui entra a provocação que eu mais gosto de fazer: se o dinheiro não fosse uma necessidade, o que você faria da sua vida?

Essa pergunta abre portas e coloca luz em aspectos esquecidos da nossa vida. Ela mostra que talvez você esteja pronto para viver outras versões de si mesmo, mas ainda não teve coragem de fazer o movimento.

O que vem pela frente no futuro

Muitas profissões vão mudar. Outras nem existem ainda. O futuro do trabalho não é ter “um emprego fixo”, mas sim combinar diferentes formas de atuar. Você vai escolher onde coloca sua energia, vai ajustar suas fontes de renda, vai equilibrar prazer, propósito e sobrevivência. Vai ter mais autonomia para criar um caminho que seja seu.

A pergunta não é “se você vai ter uma multicarreira”. A pergunta é: como você vai construir a sua? Carlos, Silvia e Carla já estão fazendo isso todos os dias. Não porque leram um livro, mas porque entenderam, na prática, que o mundo mudou e que a vida é grande demais para caber em uma função só. E você? Qual é a outra versão sua que está esperando para nascer?

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Salim Khouri

Salim Khouri

Salim Khouri é executivo, empresário, palestrante, professor, mentor e coach. Administrador, comunicólogo, especialista em Recursos Humanos e mestre em Administração pelo Insper, construiu uma carreira marcada pela capacidade de unir estratégia, sensibilidade e impacto humano. 

Com mais de 25 anos de experiência em desenvolvimento de pessoas e cultura organizacional, atua hoje como Diretor de Talentos & Cultura Brasil e Head Global de Diversidade, Equidade e Inclusão na Syngenta. Antes disso, liderou grandes movimentos de transformação em empresas como Vale, Ford e Odebrecht, sempre guiado pela crença de que não existe transformação organizacional sem transformação humana.

Reconhecido três vezes como um dos executivos de RH mais admirados do Brasil e um dos maiores influenciadores de Diversidade do país, Salim leva para o palco o mesmo espírito que o move nas organizações: provocar consciência, inspirar coragem e despertar o prazer de viver e trabalhar com propósito.

Instagram: @salimgkn / @atopsicologia

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