Copa do Mundo é coisa de mulher!
Duas listras horizontais estamparam a chuteira de Marta, a maior jogadora brasileira, durante a Copa do Mundo de 2019. O símbolo é simples, mas o pedido feito a partir dele demanda uma transformação complexa: igualdade de gênero. Agora, às vésperas de uma nova edição do torneio mundial e no mês em que o Brasil sanciona a lei de igualdade salarial entre homens e mulheres, temos a oportunidade de refletir sobre o papel do futebol na construção de uma sociedade menos desigual e como esse também precisa ser um espaço de todas.
Há quatro anos, a mensagem carregada na chuteira da nossa lendária camisa 10 ecoou bastante. Afinal, era o momento em que acontecia a Copa do Mundo Feminina com a maior audiência da história – até agora. Mas, além disso, o que despertou a atenção de todos foi o fato de que Marta, jogadora que mais vezes conquistou o prêmio de melhor do planeta, não tinha acordo de patrocínio com nenhuma fornecedora de materiais esportivos. E, então, surge um grande questionamento: se ela, gigante como é, não recebia apoio de nenhuma empresa do ramo, quão difícil não deve ser a vida de jogadoras com menos visibilidade?
Entre problemas e desafios, fato é que aquela edição do torneio foi um divisor de águas para a modalidade. Aqui no Brasil, por exemplo, foi a primeira vez que a competição foi exibida na emissora de maior audiência. Também foi a edição que, com gestos de outras jogadoras além de Marta, ajudou a popularizar discussões a respeito da desigualdade de oportunidades que nós, mulheres, sofremos até hoje. No futebol, ambiente culturalmente associado mais aos homens, essa realidade fica muito evidente. E não basta ser jogadora para perceber.
Quem me conhece bem sabe o quão fanática sou pelo Bahia. Sou torcedora, literalmente, de carteirinha e raramente deixo de ir a uma partida na Arena Fonte Nova. Sempre que vou aos jogos, acho lindo perceber que a presença das mulheres nas arquibancadas tem sido cada vez maior. Até pouco tempo atrás, no entanto, não era assim. Os estádios de futebol eram pouco convidativos para nós, e imagino que isso também criava uma barreira que fazia com que muitas perdessem o interesse pelo esporte.
Se para ir aos estádios ainda pode ser difícil para nós, imagina para aquelas que ousam jogar. Entre as jogadoras que irão representar o nosso país na Copa do Mundo, por exemplo, não são poucas as que relatam as dificuldades que enfrentaram desde a infância, simplesmente por gostarem de praticar um esporte “de menino”. Esse rótulo, infelizmente muitas vezes até hoje utilizado, apenas contribui para que o futebol feminino e seus desafios históricos sejam invisibilizados.
Me refiro a “desafios históricos” porque, vale lembrar, a modalidade foi criminalizada no Brasil por quase 40 anos. Entre 1941 e 1979, a prática do futebol por mulheres era considerada “incompatível com as condições de sua natureza”. Aqui, o que a gente observa é aquele típico pensamento de que nós nascemos única e exclusivamente para cumprir certas funções, quase sempre ligadas a uma noção de subserviência, e que a prática de um esporte “viril”, portanto, não seria compatível conosco. É muito triste pensar que isso estava amparado pela nossa Legislação até poucas décadas atrás.
Esse tipo de opinião, que também enfrentei quando entrei na política, é o que explica o cenário de pouca valorização do futebol feminino. Se a sociedade dizia que não faz parte da nossa natureza praticar esse tipo de esporte, é óbvio que as pessoas acabaram ensinadas a não lhe dar audiência. Sem audiência, não se cria torcida. Sem torcida, não há interesse dos clubes. Sem a participação dos clubes, não há patrocinadores. Nesse ciclo vicioso, o futebol feminino sofreu para chegar ao nível de visibilidade que tem desfrutado hoje em dia. Mas o caminho para uma equidade plena ainda é longo.
Em qualquer área, mulheres ainda ganham menos que homens. Essa é uma realidade comum em diversos países do mundo, mas especialmente no nosso. Nesse sentido, vimos um importante avanço recentemente: a sanção de uma lei que torna obrigatória a igualdade salarial entre pessoas que cumprem a mesma função, independentemente de quais sejam seus respectivos gêneros. Espero que, na prática, essa legislação encontre de fato a ressonância que merece e que, consequentemente, vejamos menos desigualdade no mercado de trabalho. Agora, como é a realidade no futebol, espaço que movimenta cifras bilionárias?
Bom, no esporte mais popular do planeta, a situação não é muito diferente: apesar de avanços recentes, os desafios históricos ainda demandam soluções mais duradouras. Para se ter uma noção, vejamos o exemplo dos Estados Unidos, país mais vitorioso e internacionalmente reconhecido por apoiar a modalidade. Por lá, apenas no ano passado as jogadoras da seleção passaram a receber o mesmo que os jogadores homens. E essa decisão, além de tardia, não caiu do céu: ela só ocorreu após muita pressão e mobilização de torcedoras e atletas.
Em uma rápida pesquisa, também fiquei impressionada com o abismo que existe entre a jogadora e o jogador mais bem pagos do mundo. A atleta do futebol feminino de maior salário hoje em dia é uma australiana chamada Sam Kerr, que recebe algo perto dos 500 mil dólares anuais, ou cerca de R$ 2,4 milhões. Claro que esse é um salário muito bom para qualquer um de nós, meros mortais, só que ele não parece nada perto dos R$ 680 milhões que Cristiano Ronaldo recebe por ano. E se a diferença já é grande no topo da modalidade, imagina aqui no Brasil.
Há exatamente um mês, em 12 de junho, uma partida deixou de acontecer no Brasileirão Feminino porque uma das equipes não apareceu para jogar. O caso de W.O. foi no jogo que ocorreria entre Real Ariquemes (RO) e Santos, quando as jogadoras da equipe de Rondônia entraram em greve por causa de dois meses de salários atrasados. Outra situação que vimos neste ano foi o Ceará disputar a primeira divisão do futebol nacional apenas com jogadoras das categorias de base, muitas delas adolescentes, porque o clube enxugou o orçamento da modalidade.
No fim das contas, o que essas informações e notícias nos revelam é uma realidade não muito diferente daquela que cada uma de nós enfrenta nas diversas áreas da vida: temos muitas conquistas recentes para celebrar, mas também temos muita luta pela frente. Espero que a chegada de mais uma Copa do Mundo Feminina estimule, novamente, debates que nos ajudem, enquanto sociedade, a seguir refletindo sobre a desigualdade de gênero que ainda impede tantas de nós de sonhar. Para que todas possamos ser uma Marta.
*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Aratu On.