'Ainda estou aqui': com chances reais em prêmiações, filme de Walter Salles é sóbrio, contido e inteligente
Ainda estou aqui é um poderoso exercício de direção. Este é um trabalho que se vale do passado como instrumento de preservação da memória de um dos momentos políticos mais sombrios do Brasil, a Ditadura Militar. No caso desta nova obra do cineasta Walter Salles (Central do Brasil), o público se depara com a família do escritor Marcelo Rubens Paiva, quando o autor ainda era criança – o longa-metragem é uma adaptação da obra homônima de Paiva –, quando seus pais são levados para depor pelos militares, porém seu pai, Rubens Paiva (Selton Mello), jamais retorna.
Neste cenário, encontramos padrões canônicos de produções audiovisuais sobre este período. O encontro das temperaturas esverdeadas – que remetem a limo, sujeira, tortura, ausência, melancolia etc. – com o amarelo, marrom e o vermelho terroso – que são usados nos momentos solares, mas também para evocar tensão, assombramento e/ou aterramento – é um deles. A sobriedade das interpretações, que funcionam em uma progressão contida, com pequenas ou maiores explosões emocionais – vindas dos momentos de prisão, tortura e/ou injustiça – também.
Se esta é uma produção que segue um padrão visual e discursivo, o que há então de tão especial em Ainda estou aqui? O que há nela para além de sua linguagem visual e escolha de construção argumentativa, que dá um check em pontos que agradam a crítica e a os festivais gringos – justamente por se manter neste visual sóbrio, para contar uma história forte, algo que funciona muito em narrativas do e para o Norte globlal. O que salta os olhos aqui – ou melhor, que atinge o coração – é a figura de Eunice Paiva (Fernanda Torres). O Brasil de 2024 (ou parte dele), que se recupera ainda do Golpe de 2016, compreende e se apega à Eunice, de alguma maneira.
Ainda que a sua dor seja inenarrável e somente quem viveu algo semelhante consiga saber, infelizmente, o que ela sentiu, o seu desejo de proteger a sua família e o seu choque com os atos impunes dos milicos avassalam a alma de quem acompanha a sessão de Ainda estou aqui. A construção da trama, o clímax e o início de seu desenlace garantem a qualidade alta do longa-metragem.
Primeiramente, o espectador entra na vida íntima da família Paiva. Novamente, o uso dos tons abertos colabora para que a impressão de dia de verão se alongue e preencha a plateia com a impressão de que ali existe um grupo feliz, coeso e unido. Ao mesmo tempo, a câmera de Salles se movimenta “feliz” e mais leve até a metade da projeção, antes dos atos trágicos se iniciarem.
https://youtu.be/PYnMAObH8NY
Planos mais abertos, que contam com os filhos de Eunice brincando na praia, de Rubens e Eunice jogando gamão ou das festas da família, cheias de amigos, reforçam a ambientação de harmonia e mergulham a espectatorialidade neste universo ficcional, da zona do Rio de Janeiro, da década de 1979. Assim, em travellings e panorâmicas, o espectador é invadido por essa dinâmica de classe média alta, intelectualizada, brasileira e alegre. Salles ainda insere imagens da filmadora Kodak antiga, da personagem Heloísa, filha de Eunice.
No entanto, é importante ressaltar que a instalação de tensão e tom trágico - no sentido dramatúrgico - não é repentino. As tensões são postas gradativamente e, apesar do clima ameno da casa dos Paiva existir, a presença dos militares, seus esquemas e truculências aparecem desde o começo do longa, bem como a noção das personagens do que está acontecendo em solos brasileiros. Há, neste sentido, um cuidado da equipe, incluindo da direção, em imprimir o olhar da protagonista diante da sua realidade e a do país.
Esta dicotomia entre o mundo dos Paiva e o dos anos de chumbo fomenta a complexidade da trama. Por isso, mesmo que Ainda estou aqui conte com recursos visuais e discursivos bastante esperados, por seu tema, elenco e direção envolvidos, e seu próprio espaço ocupado dentro do mercado cinematográfico, existe uma sensibilidade para com a família Paiva, um cuidado com a manutenção da consciência política e da história do país e um conhecimento técnico de dramaturgia e audiovisual, que tornam o resultado geral positivo.
A própria noção de Fernanda Torres de concepção de papel trágico quase grego, no qual a heroína se esgarça e perde sua serenidade gradativamente, enquanto busca justiça está aqui. É uma obra feita por conhecedores de seus ofícios, que através do entendimento e estudo de tecnicidades artísticas, procuram ativar o emocional de quem acompanha a caminhada de Eunice. Sim, mas também há um pequeno escape de intencionalidades, que afeta um tanto de toda essa qualidade dos aspectos formais.
O enredo conta com três desfechos da história. Os 25 anos depois de quando Eunice e sua família saem do Rio de Janeiro, 2014 e uma cartela final, que informa dados sobre a vida e morte da protagonista. Por esta razão, a força do encerramento da trajetória da figura central se esvai. Dificilmente, Walter cortaria uma sequência gravada com Fernanda Montenegro atuando, porém não há nas cenas dos Paiva em 2014 nada a não ser reiteração do que já foi contado e a perda da coesão da estética visual, elaborada durante toda a exibição.
São detalhes que incomodam, mas o importante é a continuidade de um cinema que expõe o passado de um país que insiste em esquecer de seus próprios erros e crimes. É também um material que dialoga com o mundo e que coloca o Brasil no páreo de premiações, por conta de seu valor de produção e consciência de mercado. Não é um filmaço, porém um bom filme.
*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Aratu On.