Mães na Pandemia | Jovem que perdeu a mãe para a Covid-19 desabafa: ?só dói na pele?
Mães na Pandemia | Jovem que perdeu a mãe para a Covid-19 desabafa: ?só dói na pele?
Planos alterados, incertezas e novas perspectivas. Desde que decretada a pandemia do novo coronavírus, pessoas no mundo todo precisaram lidar com uma série de desafios, e o “novo normal” afetou a vida de milhões delas, independentemente de terem sido, ou não, contaminadas.
Pensando nisso, decidimos contar, nesta semana, três histórias de mulheres que, de alguma forma, tiveram suas rotinas - e até angústias - modificadas pelo atual cenário, e como elas têm feito para seguir em meio às mudanças.
Nesta sexta-feira (23/10), você vai conhecer a história de Gisele, que perdeu a mãe para a Covid-19.
Boa leitura!
“Prefiro ficar com a lembrança da mãe ativa e alegre. A mãe ‘pós-covid’ não seria a minha, não seria ela pra ela mesma”. É com esse pensamento que a jornalista Gisele Valverde, de 23 anos, tem encarado a passagem da mãe, Alzilene Conceição, que morreu aos 56 anos, no dia 7 de julho, em Salvador, devido a complicações causadas pela Covid-19.
Quem vê a jovem falando sobre o ocorrido pode até se surpreender com a tranquilidade com a qual ela relata a história, desde os primeiros sintomas e até mesmo o dia do falecimento, o que atribui ao espiritismo. “Somos espíritas há 12 anos. Nossa relação com o desencarne, que não é uma morte - porque a gente pensa que o espírito é eterno e a matéria é temporária - é muito tranquila”, explica.
Ainda assim, “nenhum dia 7 é mais o mesmo”, e a jornalista, que trabalha como produtora de projetos sociais, ressalta que não adianta aconselhar, ou mostrar os corpos das vítimas da doença, pois “só dói na pele”.
“Tem muita gente na rua, sem máscara, pensando ‘ah, que besteira; minha vizinha pegou e ficou bem, se eu pegar vai ser a mesma coisa’, mas cada corpo é um corpo. Tem pessoas que ficam cinco meses na UTI [Unidade de Terapia Intensiva] e saem com vida; pessoas que ficam em casa, 15 dias de quarentena, com sintomas leves... e tem gente que fica uma semana no hospital e morre”, avalia Gisele.
No caso da mãe dela, Lene, como era carinhosamente chamada, o contágio pode ter vindo de dentro da própria família, por meio de uma sobrinha que morava em frente à casa das duas, no bairro da Boca do Rio, na capital baiana.
“Minha prima apresentou alguns sintomas de ‘gripe’ e frequentava lá em casa. Talvez pela nossa proximidade, não fomos tão ‘rigorosas’ nos cuidados”, diz Gisele, acrescentando que a parente nunca chegou a fazer o teste para a doença, mas ficou mal por pensar na possibilidade de ter transmitido o vírus.
Lene desenvolveu os principais sintomas da enfermidade causada pelo novo coronavírus. Começou com uma febre leve (combatida com dipirona e paracetamol) e depois vieram enjoos, tontura, perda do paladar e falta de ar. “Só levei na UPA [Unidade de Pronto Atendimento] quatro dias depois, quando começou a tosse seca, sem muco, e dificuldade de falar”, lembra a filha, que esperou um pouco por também se preocupar com a avó e os dois tios – todos do grupo de risco – que moram no andar de baixo do imóvel que vivia, então, com a mãe. “Foi no dia 12 de junho. Chegando lá, ela já entrou em isolamento - direto - e eu não a vi mais, pessoalmente. Foram 21 dias internada”.
Durante este período, Alzilene passou por dois hospitais de campanha. Precisou ser transferida, pois necessitava de um nefrologista (médico que trata doenças do sistema urinário, principalmente relacionadas aos rins). Poucos dias depois de chegar ao Santa Clara, foi encaminhada para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI), porque estava usando o nível máximo de oxigênio.
Até o dia 16 de junho, mãe e filha conseguiam se comunicar, às vezes, por chamadas de vídeo. No dia 17, Gisele foi buscar todos os pertences dela - inclusive o celular.
A jovem manteve o pensamento positivo e, no dia 6 de julho, uma notícia trouxe um pouco de esperança. “Ela fez uma traqueostomia, o que a permitiria ficar acordada, então seria possível realizar uma nova chamada de vídeo. Só que ela nem acordou. Ficou tanto tempo entubada, com tantos medicamentos... teve falência múltipla dos órgãos, faleceu dormindo”, conta a jornalista.
Embora a mãe tivesse um histórico não tão bom de saúde – ficava debilitada facilmente, desde criança, segundo Gisele -, ambas desconheciam que Lene integrasse algum grupo de risco da Covid-19. A notícia veio na última unidade de saúde: “Soube pelo médico que a acompanhou que ela teve uma asma mal curada na infância, então ela tinha uma deficiência respiratória que não foi devidamente tratada”.
DESPEDIDA E ACEITAÇÃO
Imagem: arte/Vivian Alecy/Aratu On
“Antes mesmo de pandemia, minha mãe dizia: ‘se chegar minha vez, chegou. Se for da vontade de Deus, que me leve’, e eu pedia para ela parar com isso, mas ela falava que estava pronta, que já tinha feito o que tinha que fazer, que a filha dela estava estruturada”, lembra Gisele.
Mesmo assim, confessa que ninguém nunca está 100% preparado para o momento da partida. “Ninguém entende até hoje. A sensação que eu tenho é de que ela não faleceu, mas, sim, de uma ausência temporária. Muitas pessoas evitam falar, para que eu não presencie o momento de pesar, mas quem vem aqui em casa não sente a energia densa. Eu estou tranquila”.
Perguntada se isso seria uma espécie de negação, a jovem diz que tem plena consciência de que a mãe se foi. “A ficha caiu, sim, porque eu que fiz o reconhecimento do corpo dela, fui sozinha na sala, vi no caixão. Meu subconsciente e consciente sabem que ela realmente partiu”, afirma. “Porém, fico tranquila porque a partida de minha mãe, do espírito, foi encarada de uma maneira natural. Ela me preparou a vida inteira para esse momento”, completa.
Ela entrega que muitas pessoas estranham o fato de ela rir, brincar e dançar pouco tempo após o ocorrido, mas garante que a mãe gostaria de vê-la assim. “Ela era minha melhor amiga; uma parte de mim e meu inteiro, também. Éramos parceiras de festa, filmes... tudo era nós duas”.
Os pais de Gisele se divorciaram quando ela tinha apenas um ano, e a relação com o genitor sempre foi meio conturbada, mas, no momento da doença da mãe, eles estreitaram os laços. “Tem sido meu alicerce, a autoridade maior depois dela”, reflete.
Ele foi, inclusive, uma das (apenas) quatro pessoas que puderam comparecer ao enterro, no Cemitério Municipal de Plataforma. “Só fomos eu, ele, meu padrinho – irmão de consideração de minha mãe – e uma prima”, conta, lembrando que tudo foi muito rápido e com diversas restrições. Os corpos das vítimas da Covid-19, por exemplo, só podem ser colocados em gavetas de concreto, e flores só são permitidas do lado de fora. “Depois que ‘selou’ que a gente pôde fazer a despedida, e então eu fiz uma oração”.
NOVO OLHAR PARA O MUNDO
Com toda a situação que passou, Gisele adquiriu uma nova perspectiva de vida. “Depois da minha mãe, ‘a vida é hoje’”, crava, relembrando uma história que poderia ser apenas algo sutil, em que Lene ganhou um azeite de oliva extravirgem “caríssimo e lindíssimo” de aniversário, em maio deste ano, e ficou “postergando” para usar quando fizesse um bacalhau.
“Ela faleceu sem usar o azeite que queria tanto. Fiquei tão ‘indignada’ com isso que, quando cheguei em casa, depois do enterro, falei que precisava usá-lo, então fiz uma salada e joguei em cima, porque 'a vida é hoje'”.
A jornalista confessa, ainda, que pensa, às vezes, que se não fosse a pandemia, a mãe ainda estaria viva. E embora se considere “pouco sensível” e resistente à emotividade, reconhece quando é preciso “ceder ao emocional”: “quando a lágrima vem, eu deixo descer. Tenho que respeitar minhas emoções”.
“Minha perspectiva de vida mudou total. É preciso dar valor ao que se tem aqui, ao que é possível. Se não é possível, é porque não é para ter/ser. Vamos ser felizes com o que temos, tentar se ajustar ao máximo, porque a vida não espera. Não tive a chance de me despedir de minha mãe; não tive ideia de que seria a última vez”, reflete.
O médico a havia alertado, ainda, que, caso sobrevivesse, Lene teria sequelas e precisaria de cuidados permanentes. “Minha mãe nunca se priorizou. Ela tirava a roupa do corpo, se precisasse, para dar ao outro. Nesse momento do falecimento, ela reconheceu que estava esgotada e preferiu partir”, pondera Gisele. “Então, comecei a ressignificar minhas orações. Antes, eu pedia para que ela ficasse viva. Depois, pensei: ‘que aconteça o melhor para ela’, mesmo que esse melhor não seja o meu”.
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