A queda do fact checking equivale a dar ré em foguete: Elon Musk venceu
Essas reflexões me vieram por ocasião do anúncio de Mark Zuckerberg sobre a abolição do modelo de fact-checking adotado pelas plataformas da Meta nos Estados Unidos
Fonte: Pablo Reis
Era 1995 e, entre tantos dilemas e medos de um garoto de recém completados 16 anos, ingressando na faculdade de comunicação da capital, depois de viver numa cidade do interior, ficou um trauma chamado “gatekeeper”. Logo no segundo ou terceiro semestre, esse termo me chateou muito e fez baixar meu escore com avaliações ruins sobre o papel dele no jornalismo. Isso mesmo, porteiro, na tradução literal.
Hoje, parece relativamente fácil entender o conceito de um guardião das notícias, intimamente ligado ao próprio conceito de redação de veículo, com sua estrutura e hierarquias - tudo que vira funil ou filtro de informação. Simples de resumir assim, mas vá explicar isso para um adolescente assustado, tentando sintetizar com uma esferográfica meio trêmula a origem, o andamento e as implicações disso.
Naquela época, era assim que consumíamos informação. Não que fossem mentiras o que a gente tinha acesso, ao contrário. Hoje, tenho certeza que não conhecíamos todas as verdades. Só as verdades mais interessantes para determinados grupos hegemônicos, política, econômica ou culturalmente. O que interessava a estes, ficava. O que não interessava era fácil de isolar: boato, conspiração, irrelevância, desinteresse público. Pronto, bastava usar um destes artifícios e a informação era automaticamente abatida, como aniquilada por um sniper das notícias.
Agora, conteúdo é o que não falta. A abundância dele ainda vem somatizada com um adereço que convencionou-se chamar de viés. É banal brincar com pontos de vista. Quer me ver ficar bem com a Esquerda? É só eu questionar quem é você na fila do pão pra dizer se alguém é bonito ou feio. Ou me indignar com quem ousa afirmar que obesidade é uma doença (mesmo que esse “ousado” seja um médico, especialista, PHd, com pesada titulação).
Engajamento vira-folha
Quero ficar bem com a Direita? É só eu começar a indagar quem é você para querer regular minhas opiniões, patrulhando pensamentos sob a justificativa de serem incorretos politicamente. Ou argumentar pela desnecessidade de financiamento público da cultura em um país com graves problemas de saúde, segurança e educação.
Crime é crime e está previsto em vários códigos e legislações. Isso é inegociável. Mas, entre o delito comprovado e práticas que sejam moralmente condenáveis, inadequadas ou inconvenientes, há uma imensa área cinzenta. Alguns vão decretar ilegalidade, outros vão relativizar. E aí, a pergunta: Quem é o juiz do juiz?
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Essas reflexões me vieram por ocasião do anúncio de Mark Zuckerberg sobre a abolição do modelo de fact-checking adotado pelas plataformas da Meta nos Estados Unidos. Eram empresas, com humanos ungidos ao patamar de carimbarem o que é falso, o que é verdadeiro, o que é condenável, o que precisa ser banido. “Chegou a um ponto em que há muitos erros e censura demais. É hora de voltar às nossas raízes sobre a liberdade de expressão”, anunciou o CEO em vídeo, usando uma camiseta básica preta, e um relógio avaliado em mais de R$ 5 milhões.
Outro ponto importante foi mencionar que o sistema de moderação vai continuar - mas num modelo semelhante ao adotado pelo antigo Twitter, o de Notas da Comunidade, em que os usuários vão formando um consenso sobre a veracidade e viabilidade de informações. Em vez da mão invisível do mercado, entra a análise invisível da média do público. Elon Musk, a quem eu chamo de vice -presidente do mundo (porque tende a ser a segunda autoridade mais importante de cada país), venceu.
A revolução dos bi…lionários
O menino Zuck está se adaptando ao momento, e ao movimento. A entrada do ex-rival nos jardins da Casa Branca tem suas consequências. Seria ingênuo achar que esses bilionários querem salvar o mundo, ou muito menos a democracia. Querem sobrevida para seus negócios e aumentar o poder de influência. Para isso, eles perceberam que não podem prescindir de uma ala ideológica (uma wing), sobretudo quando ela se prova majoritária nos EUA com a ascensão de Trump 2.0 (armado e perigoso) ao poder.
Mas será que são fascistas?
Nesta quinta (9), o presidente Lula declarou que a decisão da startup americana é “extremamente grave” e que convocaria uma reunião de emergência com ministros, para discutir o assunto, que poderia representar ameaça à soberania dos países.
É meio um consenso entre quem analisa a política nacional que a Esquerda conseguiu conquistar corações e mentes de intelectuais, artistas, acadêmicos e universitários. E que a Direita conseguiu capturar cliques, engajamentos e a mecânica de funcionamento das redes sociais. Talvez isso explique os diversos sinais de alerta a seguir.
Meu amigo, conterrâneo, contemporâneo de faculdade, jornalista, escritor, pesquisador de mídia e de redes sociais, político, ex-deputado, Jean Wyllys considera que a medida é uma tentativa do dono da empresa de destruir a democracia. Ele enxerga ações coordenadas da “broderagem do Vale do Silício”, sob um carimbo do que chama de Capitalismo de Plataforma. E já antecipava alguma coisa no livro Falsolatria, lançado no final do ano passado: “As big techs acumularam tanto poder desde o seu advento na internet comercial que já é possível chamá-las de “estados-plataforma”, que suplantam e impõem as próprias regras a distintos “estados-nações”, inclusive acusando alguns desses governos de censura por proporem um marco regulatório para as mídias sociais”, escreve o baiano, citando o filósofo francês Pierre Levy.
A propósito do pronunciamento de Zuckerberg sobre as “novas políticas” da Meta em relação às mentiras, calúnias, difamação e discursos de ódio em suas mídias sociais (Instagram, Facebook e Threads), deixo-lhes este trecho de Falsolatria, meu livro (@editoranos @edicoessescsp ) pic.twitter.com/1fUw0tnb9J
— Jean Wyllys (@jeanwyllys_real) January 7, 2025
Guerra ao mundo
O diagnóstico da também jornalista e doutoranda em políticas públicas, ex-deputada federal pelo PC do B, a gaúcha Manuela D´ávila: “o que ele anuncia é um dos maiores fatos políticos - senão o maior - desse tempo em que vivemos”. “O que Zuckerberg diz, com todas as letras, é que a liberdade defendida pela extrema direita, as ideias de Trump e Musk, serão as suas. Ideias que ameaçam instituições e democracias. Ideias de violência e tortura. O anúncio soa mesmo como uma declaração de guerra ao mundo. Ele menciona nominalmente China e América Latina e ao se referir a regulação europeia, refere-se a Alemanha, protagonista da construção da regulação daquela região. Ao mencionar o X como sua referência, ele menciona a rede cujo proprietário opera direta e explicitamente ameaças à vida democrática de diversas regiões do planeta. É um fato imenso. Não errem tentando colocá-lo no âmbito da ´internet´”.
🚨O anúncio de Zuckerberg não é o mero anúncio de uma nova política de moderação da empresa Meta. O que ele anuncia é um dos maiores fatos políticos - senão o maior - desse tempo em que vivemos. 🚨
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— Manuela (@ManuelaDavila) January 7, 2025
O secretário de mídias digitais da Secom do Governo, João Brant, está em pânico. “O anúncio feito hoje por Mark Zuckerberg antecipa o início do governo Trump e explicita aliança da Meta com o governo dos EUA para enfrentar União Europeia, Brasil e outros países que buscam proteger direitos no ambiente online (na visão dele, os que ‘promovem censura’). É uma declaração fortíssima, que se refere ao STF como ‘corte secreta’, ataca os checadores de fatos (dizendo que eles ‘mais destruíram do que construíram confiança’) e questiona o viés da própria equipe de ‘trust and safety’ da Meta – para fugir da lei da Califórnia. Facebook e Instagram vão se tornar plataformas que vão dar total peso à liberdade de expressão individual e deixar de proteger outros direitos individuais e coletivos”.
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Nosso inimigo íntimo?
Um detalhe: sabe como eu li e tomei conhecimento de todos esses pontos de vista? Na rede X, o antigo twitter, tão demonizado, mas que serviu justamente para eu poder concordar ou discordar destes argumentos. A plataforma em que Manuela tem mais de 1,5 milhão de seguidores, Jean tem mais de 1 milhão e Brant tem quase 12 mil. Sem a rede comprada por Elon Musk, eu continuaria minha vidinha medíocre, alheio às impressões e análises de especialistas ou apenas torcedores - contra ou a favor. Quanta ironia: dependemos de plataformas que questionamos para exercer nossa própria liberdade de expressão.
Há seis meses, tive a chance de ouvir uma palestra informal do hoje ministro da Secretaria de Comunicação Social do governo, Sidônio Palmeira. Éramos quatro ou cinco numa roda durante o evento para lançar a Antena 1 em Salvador, e, bebendo água mineral, Palmeira exumava o esgoto das redes. Na avaliação dele, os “fascistas”, antes, não tinham voz, não tinham espaço, que ganharam com as mídias sociais. E, para piorar, o engajamento proposto pelo algoritmo funciona melhor a partir da disseminação de discursos de ódio. Falar mal viraliza mais, ofender e “tretar” ganham mais atenção do que comportamentos haribô. Sidônio estava bem preocupado.
Vamos dar uma passeada em outra análise, a do jornalista Glenn Greenwald. Em inglês, ele postou sobre o comentário de Brant: “É difícil mensurar o quão irritadas e chateadas autoridades brasileiras como esta -- juntamente com outros apoiadores de seu esquema secreto de censura judicial sem devido processo legal -- estão com o anúncio de Zuckerberg. O anúncio do CEO da Meta destruiu as principais armas de supressão de discurso. Para combater esquemas sistêmicos de censura estatal online, as empresas de mídia social podem se unir contra eles. Não pode ser apenas Rumble ou X. O país simplesmente os banirá.
Mas se um país banir tudo por se recusar a censurar -- X, Insta, FB, YouTube, etc. -- seus cidadãos ficarão enfurecidos. Quando Zuckerberg denunciou sistemas secretos e sem devido processo legal de censura na América Latina, autoridades brasileiras presumiram que ele estava falando sobre a censura supervisionada pela Suprema Corte, porque ele estava se referindo a isso”.
It's hard to overstate how angry and upset Brazilian officials like this are -- along with other supporters of its secret, due-process-free judicial censorship scheme -- about Zuckerberg's announcement.
The Meta CEO's announcement gutted the core weapons of speech suppression. https://t.co/brAwYxcEtL
— Glenn Greenwald (@ggreenwald) January 7, 2025
Greenwald, também advogado, viúvo do brasileiro David Miranda, foi do Olimpo dos progressistas (quando expôs as relações espúrias do então juiz Sérgio Moro que resultaram na condenação de Lula) para o purgatório (quando seu jornalismo expôs a série de ritos informais do ministro Alexandre de Moraes para investigar bolsonaristas, que se convencionou chamar de Vaza Toga). Greenwald tem 2,2 milhões de seguidores no X.
Como executivo e como engenheiro, Elon Musk conseguiu a proeza de subverter um ditado popular de que foguete não dá ré. Com a empresa Space X, mandou aeronaves para o espaço e conseguiu fazê-las voltar, em pouso aplaudido na vertical, acolhido por um braço mecânico e intacto para novas missões. Barateou as expedições e seus custos estratosféricos, e conseguiu multiplicar os lucros e os contratos com a NASA. O feito atual de unir as outras big techs no mesmo pensamento tem desdobramentos e repercussões tão impactantes.
Ah, na faculdade, Jean foi sempre mais aplicado e talentoso do que eu. Duvido que tivesse tido problemas em captar o conceito de gatekeeper.
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