Shawn Mendes e Nicolly visitaram a mesma Bahia? Sim, e isso é um problema

Há um abismo invisível entre o turista do luxo e o turista da vivência. Para um, a Bahia é sinônimo de charme exótico e alegria espontânea. Para o outro, é lentidão, barulho, cansaço. Ambos têm razão...

Por Pablo Reis.

Shawn Mendes e Nicolly visitaram a mesma Bahia? Sim, e isso é um problemaMontagem sobre imagens de redes sociais

A Bahia que acolheu Shawn Mendes é a mesma que recebeu Nicolly Martins? Aparentemente, estamos falando do mesmo espaço geográfico, da mesma cultura, da mesma tradição. Respiraram o mesmo ar salgado, aplaudiram o mesmo pôr do sol sobre o Atlântico e, talvez, até tenham sentido a mesma brisa no rosto. Mas o que um viu foi paraíso; o que a outra viu, purgatório.

Coloque o canadense de 27 anos e a paulistana de 24 anos para falar abertamente sobre a vivência na capital baiana, desde que seja numa sala blindada, à prova de cancelamentos. Certamente teremos depoimentos que pareçam tão distantes quanto Toronto e Adis Abeba, a capital da Etiópia. 

Em um breve e emblemático instante, o universo turístico de Salvador serviu como palco para duas realidades paralelas, quase simultâneas, que, se fossem montadas por um antropólogo pesquisador, não teriam tanto efeito. A nossa complexidade proporcionou a navegação em águas douradas do astro pop canadense. A nossa complexidade teve esse encontro abrupto e indigesto com a influenciadora digital, que virou uma anti embaixadora de nossa infraestrutura local. 

Enquanto um flutuava sobre um cartão-postal vivo; a outra tropeçava em filas, esperas e ruídos. Analisar esses dois polos não é buscar o veredito de "certo" ou "errado", mas sim usar a lupa da crítica social para dissecar camadas da experiência turística na capital da Bahia.

Shawn Mendes Turista Bahia Prompt Matheus Carvalho

Nicolly Turista Bahia Prompt Matheus Carvalho

A Expedição de Shawn Mendes

A visita do artista canadense Shawn Mendes a Salvador se desenhou como uma jornada protegida por um escudo invisível de fama e do chamado high yield (alto poder aquisitivo). Mendes, que já havia desfrutado do luxo em Trancoso (com diárias que superavam R$ 6 mil), manteve-se na capital sob as asas da "presidenta da Bahia", Ivete Sangalo. Ele se hospedou no icônico Morada dos Cardeais, um prédio de luxo, almoçou com a cantora em seu píer e foi fotografado em estúdio com o filho dela, Marcelo. Always welcome, uma interação com a cidade foi mediada pelo prestígio.

Cercado por amigos, familiares e poucos seguranças, esbanjou simpatia, tirou fotos com admiradores na praia da Barra, e arriscou um "obrigado" em português. A experiência do astro fluiu como uma boa prancha de stand paddle sobre as águas tranquilas do Porto. A tietagem e o acesso facilitado a restaurantes badalados (como o Restaurante da Preta, na Ilha dos Frades) mitigaram quaisquer atritos logísticos ou de serviço. A Bahia apresentou seu lado mais polido, acolhedor (hospitalidade do povo é um aspecto positivo para 67,7% dos turistas em Salvador) e culturalmente rico. Tudo perfeito, tudo instagramável. A Bahia lhe estendeu o tapete solar da hospitalidade.


O choque de realidade e a voz de Nicolly Martins

Em contraste, a influenciadora Nicolly Martins, uma paulistana que começou a se notabilizar com vídeos falando sobre dores e delícias da vida na periferia (@elanicolz ), veio à cidade para o festival Afropunk. Vivenciou a Bahia através de uma lente menos filtrada. Nicoly foi raiz. Ela relatou ter tido um choque cultural ao se deparar com o que classificou como "péssimo" e "horroroso" atendimento em estabelecimentos. Sua queixa focou na lentidão do serviço ("aqui na Bahia demora pra tudo") e na dificuldade dos atendentes em anotar pedidos. Uma coreografia entre precariedade e paciência (ou a falta desta).

O ponto de ruptura sísmica veio quando Nicolly associou a lentidão a um estereótipo, sugerindo que o serviço demorava porque "o pessoal é da praia" e "é tranquilo". A generalização provocou uma enxurrada de críticas, e ela foi amplamente acusada de xenofobia. Até a própria Prefeitura de Salvador insinuou preconceito disfarçado de crítica. O influenciador Ruivo Baiano questionou o uso de clichês ligados à preguiça. A Prefeitura, por sua vez, defendeu os trabalhadores, afirmando que foi o "povo da praia" quem ajudou a construir o país, exaltando o trabalho incansável dos soteropolitanos.

Sem citar diretamente o caso, mas no auge da polêmica, Pedro Tourinho fez uma postagem elegante pedindo “uma consciência coletiva de rede, um letramento digital, para prevenir a sociedade de violências desnecessárias”. Ele continua, denunciando o linchamento virtual: “quando a gente se dá conta, assistimos a uma avalanche aparentemente inteligente, porém irracional, de textos, de muita crítica e vigilância quase sempre ao redor de uma mulher”

Fosse o chamamento de um publicitário, ex-gestor público, empresário e especialista em gestão de imagem, já seria de muito valor. Além disso tudo, é dele a obra vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura de 2025, “Ensaio sobre o Cancelamento”, que trata justamente sobre os perigos dessa utilização quase insidiosa das redes sociais.

 

O pesquisador e comunicador James Martins percebeu o que parecia óbvio: há matéria prima real para o dissabor e para as reclamações. No programa dele na rádio Metrópole, o Bem Na Hora, chegou a dizer que já passou por situações semelhantes e que os bons garçons formam uma minoria, que ele conhece pelo nome. 

Martins, o James, não a NIcolly, arriscou uma hipótese incômoda: o problema de atendimento pode ser um eco distante da escravidão — um gesto inconsciente de resistência à servidão. Um tipo de sabotagem ancestral. Ou, talvez, apenas, o reflexo de um sistema que ainda não valoriza quem serve.

 

 

O problema, portanto, existe. O silêncio em torno dele também. A questão não está mais apenas em como enfrentá-lo, mas também em quem tem permissão para encará-lo.

Problema estrutural ou maledicência rasa?

Apesar do pedido de calma aos críticos e da justificativa de ter sido "mal interpretada", Nicolly reiterou a péssima qualidade do atendimento, chegando a desabafar diretamente do aeroporto: "Odiei estar aqui!" Sua experiência, embora criticada pela forma, tocou em problemas de atendimento que, embora não necessariamente ligados à lentidão praiana, ecoam dificuldades estruturais amplamente citadas por outros turistas e prestadores de serviço.

Enquanto Shawn Mendes flutuava sobre a Bahia do desejo, Nicolly se chocava contra a Bahia do desajuste. O problema não reside puramente na má-vontade local, mas nas deficiências crônicas de um sistema que ainda luta para oferecer excelência a todos os perfis de visitantes.

Uma pesquisa de 2017 sobre a demanda turística na Baía de Todos-os-Santos revela que, embora a satisfação geral com a viagem em Salvador seja alta (4,58 em contraste com 4,30 nos demais municípios da BTS), e as praias e atrativos histórico-culturais (76,3% e 71,9%, respectivamente) sejam os aspectos mais elogiados, o atrito com a infraestrutura social e urbana é inegável.

Os que mais desagradaram foram: 

- Abordagem de vendedores (38,1%);
- Segurança (35,0%); 
- Abordagem de pedintes (34,5%)

Estes dados validam a queixa de prestadores de serviços culturais no Pelourinho, que descrevem um "problema social gravíssimo", onde é difícil andar 100 metros sem ser acionado (de forma ríspida ou amistosa) por alguém vendendo ou pedindo dinheiro.

Shawn Nicolly Prompt Matheus Carvalho

Viver antes, reclamar depois

Enquanto Shawn desfrutava da culinária local em um almoço organizado por uma diva, a produtora de conteúdo lutava contra a "demora para tudo" e a ineficiência no serviço. Seu erro não foi o de fazer a crítica - pois os problemas de serviço são reais, com prestadores reconhecendo a concorrência desleal e a necessidade de qualificação - mas sim o de atribuí-la a um estereótipo xenofóbico, perpetuando uma visão reducionista do trabalho local.

Há um abismo invisível entre o turista do luxo e o turista da vivência. Para um, a Bahia é sinônimo de charme exótico e alegria espontânea. Para o outro, é lentidão, barulho, cansaço. Ambos têm razão - mas apenas um tem o microfone e a benevolência do público.

Talvez o verdadeiro debate não seja sobre quem ofendeu quem, mas sobre quem teve acesso a qual Bahia. O turismo, como a própria sociedade, é um espelho quebrado: cada fragmento reflete um pedaço da verdade.

A visita paralela do ídolo e da influenciadora à Bahia se assemelha a um caleidoscópio, onde a mesma luz incide em fragmentos que geram imagens radicalmente diferentes. No prisma de Shawn Mendes, a Bahia é o acolhimento efusivo e a facilidade de acesso (o gasto médio do turista náutico em Salvador de R$ 250,68 sugere ser uma realidade de maior poder aquisitivo e roteiros organizados). 

Para Nicolly Martins, é a fricção social e a infraestrutura trôpega (problemas que afetam o turista cultural e nacional, que predomina, e muitas vezes têm menor renda que o internacional).

Moldura ou rachadura?

Aos pés de Shawn Mendes, o potencial de excelência - uma Salvador que brilha sob o sol e diante das câmeras. Aos olhos de Nicolly, as rachaduras - a Salvador que tenta atender, sorrir e resistir ao mesmo tempo. Conciliar esses dois mundos não é tarefa estética, é tarefa ética.

É preciso investir em formação, dignidade e estrutura para que o garçom, o guia e a atendente também sejam protagonistas da experiência, e não vítimas dela. A Bahia não precisa escolher entre o luxo e a raiz - precisa fazer com que ambos coexistam com respeito e qualidade.

Enquanto o canadense voltará contando sobre o pôr do sol que parece uma canção de Caetano, Nicolly levará na memória o gosto amargo da espera e o ruído da incompreensão.
O primeiro será lembrado com ternura; a segunda, com escárnio.

Talvez Shawn e Nicolly tenham visitado a mesma Bahia, mas viram versões distintas de um mesmo sonho. Um viu a moldura; a outra, a parede rachada e com infiltração atrás dela.

E o mais grave é que ambos estavam certos.

 

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