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'Vocação para a Fé': freiras de congregação em Salvador não usam hábito e servem às comunidades

Na capital baiana, o convento da Sociedade das Filhas do Coração de Maria, fundada por uma mulher na França em 1791, fica em um prédio na Ondina

Por Bruna Castelo Branco

'Vocação para a Fé': freiras de congregação em Salvador não usam hábito e servem às comunidadesBruna Castelo Branco/Aratu On

Quem passa desavisado pela Avenida Adhemar de Barros, na Ondina, ali perto do monumento conhecido como “Gordinhas”, não tem como saber que o prédio que tem vista para a praça é um convento. E não é para menos: além de ser um local comum, parecido com qualquer edifício residencial que fica na mesma rua, também não é usual encontrar freiras vestindo hábitos por ali. É que as moradoras e frequentadoras da casa da Sociedade das Filhas do Coração de Maria, presente no Brasil há 80 anos, não usam as roupas tradicionais das Irmãs da Igreja Católica.


Foi na Sociedade das Filhas do Coração de Maria, congregação nascida na França, fundada na época da Revolução Francesa, que Irmã Anajar Fernandes, de 69 anos, fez os votos e se tornou freira. E, por mais que tenha esperado até a vida adulta para tomar essa decisão, ela conta que o “chamado” veio ainda na infância, quando estudava em uma escola católica.



“Por volta dos nove anos, já sentia [o chamado]. Eu queria por conta daquele hábito, tão bonito… e aí, toda a minha vida foi pautada em cima dessa questão vocacional. Depois, quando eu estava bem maiorzinha, eu falei com a minha mãe, e combinamos de esperar. Nós sabemos que a questão de discriminação continua nas células [religiosas] sendo ferrenha, e só entende quem é da minha cor. Então, minha mãe disse: ‘Você tem que estudar para ter uma condição de trabalhar com as pessoas, para não ficar só na cozinha’. Quando você não tem conhecimento, você se deixa levar, até mesmo na questão da religião”, relatou.



Anajar cumpriu o combinado e se formou em Enfermagem pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Depois, concluiu os cursos de Pedagogia e Teologia. “Quarenta anos depois que eu me formei, uma colega da faculdade de Enfermagem disse: ‘Ah, mas todo mundo sabia que você era freira’. Eu pensei: ‘Meu Deus, eu nunca me dei conta de que o pessoal percebia’. Mas, você dá sinais às pessoas”, comenta.


Já na época em que Anajar mostrava, mesmo sem querer, que optaria pela vida religiosa, na década de 1980, o número de mulheres interessadas em seguir o mesmo caminho caía consideravelmente em relação aos períodos anteriores. Segundo dados da Arquidiocese de São Salvador da Bahia, nos últimos 10 anos, o número de freiras reduziu em cerca de 44%: em 2013, havia 762 religiosas na cidade, enquanto, em 2023, esse total caiu para 424. Na época, a congregação com a maior quantidade de freiras era a Religiosas do Santíssimo Sacramento (Sacramentinas), com 124 Irmãs. Dez anos depois, esse número chegou a 39.


[caption id="attachment_357233" align="alignnone" width="700"] Irmã Anajar Fernandes conta que sentiu o “chamado” para se tornar freira ainda criança, com apenas nove anos. | Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On[/caption]

A professora em Ciências da Religião, Sandra Célia Coelho, pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas Interdepartamental em Culturas e Religiões da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), explica que o número de noviças, ou seja, mulheres que se preparam para professarem num convento, caiu no Brasil nas últimas décadas porque o lugar da mulher no mundo mudou. 



“Até então, muitas mulheres chegavam a esse espaço pela questão da orientação familiar, outras, pela questão cultural, outras, pelo desejo, identificação. Elas viam como a única forma em que poderiam estar atuando profissionalmente, outras, também, como um intermédio para os estudos, e para poder se ausentar daquele espaço familiar. São diversas nuances que levam essas mulheres a adentrarem nesses espaços”, aponta a especialista.



A pesquisadora descreve essa mudança como um cenário de “envelhecimento e escassez”: “Ou seja: a diminuição da procura e o envelhecimento daquelas mulheres que estão ali, naquele espaço”.


REVOLUÇÃO


Depois de formada, a jovem enfermeira se deu conta de que precisava de tempo e espaço para refletir sobre os caminhos religiosos que queria seguir. Para se afastar um pouco da vida, e das pessoas que já conhecia, e entender melhor a realidade de um lugar novo, Anajar aceitou um emprego em uma cidade que, até então, nem sabia onde ficava: Cícero Dantas, no sertão da Bahia.


“Foi uma maravilha. Embora trabalhando, eu estava longe dessas demandas de solicitação de Salvador. Lá, tive a oportunidade de pensar em mim, amadurecer a minha vocação. Tinha mais tempo para rezar, tinha mais tempo para conversar com Deus”. E foi lá também que ela decidiu que, quando voltasse, faria parte da Sociedade das Filhas do Coração de Maria, fundada por uma mulher, Madre Adelaide de Cicé, em 1791.



“A congregação nasceu em uma revolução, e estamos sempre em revolução: social, política, econômica, religiosa… e a congregação surgiu nesse período de turbulência histórica. A Revolução Francesa foi palco para tantas outras revoluções e independências”, explica Anajar.



Diferente de outras congregações religiosas espalhadas pelo mundo, a Sociedade das Filhas do Coração de Maria, que está em 35 países, já foi criada com o objetivo de servir fora do convento, nas ruas, em uma época que a fome e a guerra imperavam na Europa.


Na nossa congregação, as Irmãs podiam fazer os trabalhos nas ruas, nas casas, visitar hospitais”, ressalta a religiosa. Outra diferença entre as freiras do Coração de Maria, e as que vivem no imaginário de quase todo mundo, é que as primeiras não vestem o hábito — aquelas roupas religiosas usadas por quem faz parte de comunidades monásticas. 


Por isso, mesmo depois de fazer os primeiros votos, Anajar nunca deixou de ser uma mulher ativa, frequentar eventos, viajar, e trabalhar como enfermeira. Por 14 anos, ela atuou na central de transplante de órgãos. “Independente de ser paga por isso, ou não, eu também trabalhava a dimensão afetiva, espiritual e religiosa das pessoas, porque você doar algo de alguém que lhe é caro não é fácil, né? Eu trabalhava na sensibilização, não só da família, mas ia em escolas, shoppings e aeroportos, para falar sobre a importância de doar, porque nós temos milhões de pessoas na fila de espera”, relata.


E foi fora do convento, em um evento de formação arquidiocesana, que Anajar e Irmã Maristela Neves de Jesus, de 54 anos, freira da congregação há 27, se conheceram. Maristela ainda lembra bem desse dia: “Cheguei lá, depois do trabalho, com o auditório já cheio. Fiquei em pé e, pouco depois, vagou um lugar. Do lado de quem? Dessa senhora aqui que, até então, eu não conhecia, não sabia quem era. No intervalo, a gente conversava. Era uma semana de formação”.


Dali, nasceu uma amizade. “No início, eu nem falei de vocação, e nem ela. Ao longo da semana que eu descobri que ela era freira. Eu já sentia o chamado, só que a grande questão era primeiro me certificar de que era isso mesmo o que o Senhor queria de mim. Eu tinha dito a Deus: quando chegar o meu lugar, você me avise, me sinalize, porque, aí, eu vou”, conta Maristela que, na época em que conheceu Anajar, ainda era estudante universitária.


Ela e Anajar que, nesse período, morou três anos no Benin, na África, nunca se afastaram, mesmo com a distância. Lá, Anajar, fluente em francês, trabalhava como enfermeira e professora. “Eu escrevia para ela todo mês”, relata Maristela. Aos 27 anos, ela, que já participava de atividades da congregação, finalmente disse para Anajar que gostaria de se tornar freira. “Estava toda sem jeito para falar, mas, chamei ela e disse que queria fazer a experiência aqui. Aí, a gente vai descobrindo os passos, os caminhos”, detalha. Hoje, Maristela é Superiora da comunidade.


[caption id="attachment_357234" align="alignnone" width="700"] Superiora da Sociedade das Filhas do Coração de Maria, Irmã Maristela Neves de Jesus [à esquerda] conheceu Irmã Anajar [à direita] há 27 anos. | Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On[/caption]

CÉU NA TERRA


Anajar e Maristela também notam que, cada vez mais, o número de mulheres interessadas em entrar na vida religiosa está menor. Nos anos de 1980, quando chegou na Sociedade das Filhas do Coração de Maria, Anajar conta que havia 100 Irmãs da mesma congregação espalhadas pelo Brasil, cerca de 20 em Salvador e quatro mil no mundo. Hoje, são 75 no país, oito na capital baiana e 1,5 mil no mundo. A última vez em que uma nova freira entrou na comunidade no Brasil foi há 10 anos, o que explica os quartos e salas vazias na sede de Salvador. Anajar detalha:



“Nós estamos passando por uma crise vocacional e congregacional muito grande no mundo. Mas, eu acredito que nós temos muitas vocações à vida sacerdotal. Mas, as pessoas têm medo da austeridade. Vou usar uma frase de São Paulo: ‘Tudo é permitido, mas nem tudo me convém’. Nem tudo convém para todas as pessoas. As suas responsabilidades vão mudando de acordo com os seus compromissos e opções”.



Agora, Anajar que, além do Benin, já viveu no Rio de Janeiro, no Amazonas e em Goiás, está morando no Haiti, no Caribe, e veio para Salvador de férias. A missionária diz que, ao dizer “sim” ao chamado para a vida congregacional, não imaginou que conheceria tantos lugares e pessoas diferentes, mas garante que recebe com alegria essa missão. “A gente dá o sim e Deus nos leva. Eu digo assim: eu sou como folha seca levada pelo vento”, conclui.


Para se formar na Sociedade das Filhas do Coração de Maria, basta atender ao chamado e procurar por elas no prédio da Ondina. Como Maristela esclarece, a congregação é aberta para todas: “Viúvas, mulheres que já tenham filhos, podem entrar no processo formativo. Se for novinha, menor de idade, vai passar por um processo formativo para amadurecer a ideia”. Atualmente, o grupo presta trabalhos voluntários na área de educação, com reforço escolar, computação e capoeira, em comunidades da região.


Na visão da Superiora, aliás, a experiência de ser freira é única e irrepetível. “Eu acho que ser freira é você fazer experiência do céu na terra. E, com isso, eu não quero dizer que não tenha suas dificuldades, perrengues e sofrimentos. Mas, uma coisa que sempre me atraiu na vida religiosa foi, primeiro, a relação de vida em comunidade. Como é que tantas mulheres de diferentes situações, diferentes famílias, diferentes cabeças, diferentes condições sociais e culturais, vivem juntas sem se matar? Eu acho que é um vínculo muito sublime. Antes de entrar na congregação, eu sempre dizia: eu quero ser irmã das Irmãs”.


[caption id="attachment_357238" align="alignnone" width="700"] A última vez em que uma nova freira entrou na Sociedade das Filhas do Coração de Maria foi há 10 anos. | Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On[/caption]

A FORMAÇÃO DE UMA FREIRA


Fonte: Arquidiocese de São Salvador da Bahia

Início: visitas à congregação e acompanhamento de uma irmã que vai conhecer a candidata à freira e sua família.


Apirantado: no primeiro ano, a mulher mora temporariamente na casa de formação, conhecendo e participando da vida pastoral.


Postulantado: no segundo ano, ela mora com outras postulantes, estuda intensivamente a religião e passa a fazer trabalhos manuais e orações.


Noviciado: no terceiro e quarto anos, já considerada pertencente à congregação, entra na fase de recolhimento e oração. Em alguns casos, já usa as vestes tradicionais.


Juniorato: pode durar quase uma década e é dedicado aos primeiros votos — de pobreza, obediência e castidade —, assumindo publicamente, diante da igreja, seu compromisso.


Votos Perpétuos: são feitos para confirmar que a freira assume definitivamente seu papel.


ENCLAUSURADAS

Esta reportagem faz parte da série "Vocação para a Fé", uma parceria entre a TV Aratu e o Aratu On. O vídeo veiculado na TV, nesta terça-feira (20/8), também traz entrevistas com freiras do Convento da Ordem das Monjas Carmelitas Descalças, situado em Brotas, Salvador, que vivem enclausuradas. Confira abaixo:


Salvador é conhecida por ter "uma igreja para cada dia do ano". É na capital baiana, também, que estão espalhados mais de 100 conventos pertencentes a quase 50 congregações religiosas católicas onde, por trás dos muros, existem mulheres que escolheram dedicar a vida à religião.


Votos de castidade, obediência e pobreza estão entre os compromissos que as freiras fazem para se tornarem, oficialmente, irmãs das irmãs. Os hábitos, a rotina e a missão podem variar, a depender do grupo religioso do qual fazem parte, mas o que as une é a renúncia de uma vida comum em nome da fé.


No bairro de Brotas, em Salvador, no Convento da Ordem das Monjas Carmelitas Descalças, as freiras vivem enclausuradas. As saídas são para necessidades, a exemplo de uma ida ao médico, como explica a noviça Irmã Terezinha, de 28 anos. "A clausura favorece o nosso recolhimento aqui dentro, a nossa vida de oração, sem grandes dispersões", diz.


Os visitantes não passam das grades. São recebidos em um espaço chamado "locutório", como foi o caso da equipe de reportagem da Aratu. As imagens lá de dentro foram feitas pela Irmã Terezinha.


[caption id="attachment_367900" align="alignnone" width="700"] Irmã Terezinha no locutório | Imagem: Raimundo Alves/TV Aratu[/caption]
"Temos uma sala de recreio, uma biblioteca ao lado, a cozinha... tudo aqui no térreo. Temos um claustro com uma fonte da imagem de Nossa Senhora do Carmo, e ao redor desse claustro fica o nosso foro, a sala do recreio... Mas subindo as escadas ficam as nossas celas, como a gente chama os quartos", explica a noviça.
Ela admite que o nome "cela" causa certo espanto, a princípio, mas a compreensão vem logo depois. "Estar aqui dentro proporciona uma liberdade interior, então, às vezes, eu brinco com quem vem me visitar [e digo]: 'na verdade, vocês que estão presos aí fora, porque estou muito livre aqui'", reflete.

Claustro do convento | Imagem: arquivo pessoal/Irmã Terezinha


[caption id="attachment_367907" align="alignnone" width="700"] Parte de uma das celas (quartos) | Imagem: arquivo pessoal/Irmã Terezinha[/caption]

VISITAS E RETIROS


Do outro lado da cidade, no bairro do Jardim Nova Esperança, o Convento Dom Amando se divide entre a ala das freiras e a que é preparada para receber visitantes, como fala Irmã Márcia: "O nosso convento funciona com hospedagem nos finais de semana. Vem grupos de 50, 100 pessoas, até de 120. É um espaço que dá condição de você se encontrar com Deus, entrar naquele silêncio que faz bem à alma e ao coração".


[caption id="attachment_367929" align="alignnone" width="700"] Imagem: Raimundo Alves/TV Aratu[/caption]

O convento pertence à Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, a mesma da qual Irmã Dulce fez parte. Irmã Márcia, que nasceu na cidade onde a congregação surgiu, em Santarém, no Pará, é consagrada há mais de 50 anos e, atualmente, é uma das responsáveis pela manutenção do convento, mantido pelos valores arrecadados nos retiros.


[caption id="attachment_367927" align="alignnone" width="700"] Grupo de visitantes do Convento | Imagem: arquivo pessoal[/caption]
[embed]https://www.youtube.com/watch?v=YqIwDMIp8kc[/embed]

Próxima reportagem


A terceira e última reportagem da série "Vocação para a Fé" vai ao ar na próxima terça-feira (27/8), tentando responder como está a procura pelo ofício de freira em Salvador.


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