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Três anos após fechamento, Odorico Tavares deve ir a leilão em 2023; valor pode atingir R$ 50 milhões

Na época, o governador da Bahia, Rui Costa, disse que o terreno de 5 mil metros quadrados seria leiloado e a arrecadação seria usada para construir novas escolas no estado

Por Bruna Castelo Branco

Três anos após fechamento, Odorico Tavares deve ir a leilão em 2023; valor pode atingir R$ 50 milhõesCréditos da foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On

O metro quadrado da região da Vitória, nos números do mercado imobiliário, é o mais valorizado de Salvador. Lá, estão espaços culturais conhecidos, como o Goethe-Institut e o Museu de Arte da Bahia, prédios de luxo e casas de figuras como Ivete Sangalo, do ex-prefeito de Salvador, ACM Neto, e do senador Jaques Wagner. É também a área que abrigou, durante anos, o Colégio Estadual Odorico Tavares, fechado após decisão do governo estadual em janeiro de 2020.


Com capacidade para atender até 3,6 mil alunos, o Odorico já vinha dando sinais de que deixaria de existir há algum tempo. Quando encerrou as atividades do colégio, o governador à época e atual ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, disse que o terreno de 5 mil metros quadrados da escola iria a leilão.


Procurada pela reportagem do Aratu On, a Secretaria de Administração do Estado da Bahia (Saeb) confirmou que, em 2023, a decisão segue a mesma - a única novidade é que o leilão deve acontecer ainda este ano: “A previsão é que o imóvel vá a leilão este ano. O Estado tornará público, através do Diário Oficial, o edital do leilão”.


Segundo a avaliação de Domingos Ricao, corretor de imóveis especializado em bairros de alto padrão há 17 anos, o terreno do antigo Odorico deve ser arrematado por R$ 8 mil a R$ 10 mil o metro quadrado, ou seja: com a venda, o Estado pode arrecadar entre R$ 40 milhões e R$ 50 milhões. “Trata-se de uma área muito nobre e procurada. O Estado tem um diamante nas mãos, um terreno de 5 mil metros quadrados no bairro mais valorizado da cidade. O tamanho do terreno favorece muito a incorporação imobiliária de alto luxo”.


[caption id="attachment_205853" align="alignnone" width="768"] O Corredor da Vitória é a região mais valorizada da cidade. Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On[/caption]

E um apartamento nesse lote também não seria barato: segundo Ricao, as unidades dos andares mais altos, que teriam vista para a Baía de Todos-os-Santos, valeriam de R$ 18 mil a R$ 20 mil o metro quadrado. “No Villa Vitória, que é o exemplo mais próximo de perímetro de alto padrão, está sendo praticado R$ 16 mil [por metro quadrado] o preço médio”.


Queda nas matrículas


Entre 2010 e 2019, último ano letivo da instituição, o número de alunos matriculados no Odorico Tavares teve queda de 87%. Segundo dados do Ministério da Educação, em 2010 o colégio tinha 1.790 alunos. Em 2016, três anos antes do encerramento das atividades, eram 1.022. No final de 2019, quando a escola foi fechada, esse número já estava em 308 estudantes matriculados - e foi justamente essa redução gradual nas matrículas que justificou o fechamento.


Em dezembro de 2019, Rui Costa disse que o decréscimo de alunos estava relacionado à distância do colégio da periferia de Salvador, onde a maior parte deles morava. “Hoje, temos 30 mil alunos em Salvador, estudando em prédios alugados, sem a mínima condição de uma educação eficiente. E o que nós temos no Odorico não chega a 300 alunos matriculados. Quase a totalidade deles morando na periferia. O pai e a mãe gastando passagem de ônibus ou de metrô. E 30 mil [estudantes] sem escola suficiente. Então, o que nós estamos fazendo? Construindo novas escolas”, explicou.


À época, o gestor estadual, que ficou à frente governo até o final de 2022, detalhou que quem arrematasse o terreno não pagaria o valor em dinheiro, e sim em escolas construídas na periferia da cidade. Sem essas unidades prontas e entregues ao poder público, segundo o governador, o comprador não receberia nem a escritura do terreno.


[caption id="attachment_205869" align="alignnone" width="1024"] Em 10 anos, o número de alunos matriculados teve queda de 87%. Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On[/caption]

“Nós não vamos querer receber em dinheiro. Eu quero trocar em escolas construídas na periferia. Quem entregar mais escolas para o povo da Bahia [fica com o terreno]. Escolas com 35 salas, com laboratório, refeitório, biblioteca, quadra coberta, campo de grama sintética. Escola de primeiro mundo. E só receberão a escritura, quando a escola estiver pronta e entregue para os alunos. Estou trocando uma escola em seis, sete, oito ou nove aqui em Salvador”, pontuou Rui Costa.


Questionada se a nova gestão vai manter essa proposta, a Secretaria de Administração do Estado da Bahia respondeu que “as regras para a venda do patrimônio do Estado serão estabelecidas no Edital do certame, que será publicado oportunamente, no Diário Oficial do Estado (DOE)”.


O fim


Nos último anos, alunos e funcionários da unidade, fundada em 1994, durante o governo Antônio Carlos Magalhães, relataram que precisaram aprender a lidar com problemas causados pela falta de manutenção na estrutura da escola, fundada com o objetivo de ser um colégio público modelo. Em 2017, por exemplo, a cobertura da quadra de esportes desabou após fortes chuvas na cidade. 


Lorena Sacramento, que estudou no Odorico de 2015 a 2017, lembra que, quando chegou ao segundo ano do Ensino Médio, começou a notar que faltavam investimentos em diversas áreas, que vão desde infraestrutura até o pagamento de salários dos funcionários.


“A partir do segundo ano, quando comecei a andar com o pessoal do grêmio, comecei a perceber. Lembro que as tias da limpeza, da cantina, estavam indo trabalhar sem receber há alguns meses. Aí, começamos a ter pequenas greves, algumas paralisações. Chegou um momento em que elas não estavam mais conseguindo ir trabalhar. A gente começou a arrecadar roupa, doações, fazer cesta básica, para ver se conseguia ajudar”.


[caption id="attachment_205871" align="alignnone" width="1024"] Atualmente, a estrutura do prédio segue vazia, à espera do leilão. Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On[/caption]

Segundo Lorena, por um período, até o papel das avaliações era regrado. “A gente percebeu também isso em relação a materiais essenciais e básicos para o dia a dia. Quando era semana de prova, teve uma época que, para reduzir custo, já que o colégio era grande, as provas estavam sendo reduzidas, usando frente e verso, de uma forma que não gastasse muita folha de ofício, porque, se gastasse, não teria prova para a escola toda”.


O Aratu On solicitou à Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC) informações sobre os investimentos na escola na última década de funcionamento, mas, até a publicação desta reportagem, os dados não foram disponibilizados.


A professora de história Elizabeth Silva, que entrou na escola em 1998 e ficou até o último dia, ainda lembra bem como tudo mudou ao longo dos anos: no início, o Odorico Tavares, fechado por falta de alunos, era disputado.


“A escola foi inaugurada em 1994 com o propósito de acolher uma classe média que estava em decadência e recorria à escola pública. Então, o Odorico surge como um modelo de escola de excelência, em que a matrícula era destinada às pessoas que se submetiam a um sorteio eletrônico, porque o número de vagas era limitado. Tinha uma procura grande e não tinha vagas suficientes, por isso, muita gente ficava de fora. Em 1998, todas as 30 salas de aula estavam cheias, com turmas de 45 a 50 alunos. A demanda era tão grande, que a gente precisou usar salas que, anteriormente, eram usadas para outras atividades, como laboratórios de informática, sala de arte, sala de coordenação”.


[caption id="attachment_240293" align="alignnone" width="1024"] A decisão de fechar a escola se deu por conta da queda nas matrículas. Foto: Carla Galrão/Aratu On[/caption]

Aos poucos, porém, essa procura começou a diminuir: primeiro, por falta de novas matrículas, o turno noturno foi encerrado. Depois, foi a vez do vespertino. Para Elizabeth, o que causou essa perda foram, principalmente, as matrículas informatizadas, que confundiam as famílias e dificultavam o ingresso de novos alunos.


“Você estava em qualquer lugar da cidade e podia escolher onde você queria estudar, não precisava, necessariamente, ir à escola para fazer a matrícula. E isso começou a ruir o Odorico, porque as matrículas eram bloqueadas. Veja: você, mãe de um aluno, ia matricular o filho no Odorico, mas, quando chegava ao posto de matrícula, o sistema não disponibilizava. Então, automaticamente, ela matriculava no lugar que estava disponível, ela não iria esperar surgir uma vaga no Odorico. Se as mães iam fazer a matrícula no Odorico Tavares, nós, professores que estávamos lá, pegávamos os dados e fazíamos a matrícula. Mas, quem ia nos postos, não conseguia". 


A professora Luciana Senna, que lecionou história no colégio de 2009 a 2019, também lembra dessa dificuldade. “Depois que a matrícula passou a ser no sistema, acompanhávamos e, muitas vezes, o nome da escola não aparecia. Chegamos a ter reunião com presença de representantes da Secretaria de Educação e de estudantes, que relataram só ter conseguido matricular indo na unidade escolar. Além disso, o turno da tarde foi fechado e os estudantes remanejados para o turno matutino sem aviso prévio. Muitos que trabalhavam, tiveram que trocar de escola. A comunidade pontuou várias vezes o prejuízo, para aquela escola, de um programa que não atendia aos estudantes”.


[caption id="attachment_240297" align="alignnone" width="768"] Em dezembro de 2019, quando a possibilidade de a escola ser fechada foi anunciada, estudantes e professores se manifestaram. Foto: Carla Galrão/Aratu On[/caption]
O Aratu On também tentou confirmar essa informação com a SEC, mas não obteve resposta.

E assim, ano a ano, cada vez menos estudantes ingressavam no colégio - o que, de acordo com Elizabeth, fazia crescer os rumores de que a escola iria fechar, mesmo antes de a decisão se tornar oficial. Para lembrar às pessoas de que a unidade ainda estava aberta e aceitava novas matrículas, os professores faziam campanhas nas redes sociais e em contato direto com a sociedade. 


“Percorríamos bairros com carro de som anunciando que a escola estava aberta, porque, além de tudo, existia toda uma propaganda, entendeu? De que o Odorico iria fechar, de que não existiria a turma e não tinha professor. Existia toda uma propaganda negativando a existência daquela escola. Sabe aquela coisa que é de grão em grão que a gente vai fazendo a feijoada? É mais ou menos isso. A notícia que corria de boca em boca era que o Odorico só iria funcionar por mais um ano. Desde o momento em que entrei, em 1998, existia essa conversa. Foi uma propaganda construída historicamente”, relata Elizabeth.


[caption id="attachment_240294" align="alignnone" width="1024"] O colégio foi fundado em 1994, com o objetivo de ser uma escola pública modelo. Foto: Carla Galrão/Aratu On[/caption]

E é por isso que, na opinião dela, a localização da escola não justifica o encerramento: por anos, estudantes de Salvador e da região metropolitana davam um jeito de ir ao colégio, famoso por promover gincanas, eventos culturais e educativos e por ter um grêmio estudantil forte.


“Tinha um programa de televisão [‘Quem Sabe Mais?’, da TV Aratu], que era uma disputa entre escolas, e o Odorico sempre ganhava. Dava para aplicar determinadas práticas pedagógicas que trazem uma vivência. Por exemplo, se eu estou em uma escola periférica, vai ser mais difícil conseguir levar esses estudantes para vivenciar o que eu estou falando de Brasil Colonial, de uma arquitetura colonial. No caso do Odorico, pela localização, eu podia levar essas pessoas a todos os lugares. E entrar pelo Corredor da Vitória impacta, né? Os alunos conseguiam entrar ali de maneira brava, no sentido de: ‘Olha, eu existo. Eu sou um ser que está nesse mundo. Eu tenho direito de estar nesse espaço’. O direito à cidade é fundamental. A educação é para além dos muros da escola. As pessoas não podem ficar confinadas em um bairro. O confinamento atrofia”, relembra a professora.


Colégio fantasma


Em dezembro de 2019, quando a possibilidade de a escola ser fechada foi anunciada, estudantes e professores promoveram uma série de protestos no Corredor da Vitória e ocupações no colégio. Na oportunidade, o movimento “Odorico Tavares Resiste” criou um abaixo-assinado contra o fechamento da unidade, que atingiu quase 9 mil assinaturas.


Já com o fechamento autorizado pela Assembleia Legislativa da Bahia (AL-BA) e anunciado pelos órgãos oficiais, em janeiro de 2020, ex-alunos e funcionários iniciaram uma ocupação na escola. Em uma última, no dia 21 de janeiro, cerca de 35 pessoas entraram no Odorico e só saíram no dia seguinte.


[caption id="attachment_205855" align="alignnone" width="768"] A última ocupação no Odorico aconteceu em dezembro de 2019. Foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On [/caption]

Três dias depois, em 24 de janeiro, o Odorico Tavares amanheceu coberto por tapumes de metal, e assim continua. Na oportunidade, a Secretaria de Educação (SEC) disse que as barreiras foram instaladas preservar o patrimônio público. 


Mas, para a professora Elizabeth Silva, o sentimento é um pouco diferente: é como se os tapumes que aquietaram as manifestações e ainda escondem as portas da escola já tivessem preenchido o bairro inteiro. “Hoje, eu passo no Corredor da Vitória e sinto que é um lugar meio morto, meio vazio. Não tem mais aquela alegria daquela juventude que chegava para ir para à escola, conversando, e que depois saía conversando também”, relembrou.


Em abril de 2023, entrar no Odorico Tavares é como chegar em uma cidade fantasma, de onde todos os moradores simplesmente desapareceram: vários quadros continuam preenchidos por cálculos, aulas de história e gramática. Um antigo cômodo, que parece um banheiro, está sem pias, mas com o chão coberto por documentos, como provas, lista de chamada, fotos de alunos, formulários de matrícula e carteirinhas de estudante. Por cima de tudo isso, e em todo lugar, muito pó, cupim, lixo, terra, lama e água de chuva acumulada.


No antigo teatro, uma plaquinha em um quadro de avisos tombado no chão chama a atenção. Ela dizia: "Feliz retorno!". Mas, agora, a única sala que abriga gente é a portaria.


[caption id="attachment_240296" align="alignnone" width="1024"] Antigos documentos, provas, carteirinhas de estudante e fotos continuam na escola. Foto: Carla Galrão/Aratu On[/caption]
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