'É preciso trabalhar a cultura da doação de órgãos no Brasil', diz baiana transplantada
Dia Nacional da Doação de Órgãos é celebrado nesta sexta-feira; comerciante Mary Lucia e o irmão foram beneficiados com transplantes de fígado
"A experiência aqui em casa foi dobrada. Só tenho a dizer às pessoas que doem". Esse é o resumo do relato da comerciante Mary Lucia de Oliveira Rego, de 58 anos, moradora de Ipiaú, na Bahia, sobre a doação de órgãos. Ela e o irmão mais novo, Moisés Fábio de Caciel de Oliveira, são pessoas transplantadas. Ambos receberam novos fígados devido a complicações relacionadas à hepatite C.
Em entrevista ao Aratu On, Mary contou que a doença entrou na família dela há mais de 30 anos, com o pai - que desenvolveu cirrose hepática. "Naquela época, não se falava muito da C, só da A e B", lembra. "Então a gente sempre se perguntava 'como?', porque meu pai não bebia. Depois entendemos que era o vírus", completa.
O patriarca chegou a fazer tratamento, algo muito difícil à época, mas teve depressão, não suportou as complicações e faleceu. Pouco tempo depois, um novo susto, desta vez com Fábio.
"Ele não estava se sentindo muito bem e descobriu que também tinha o vírus da Hepatite C, então todos nós [irmãos] fizemos exames e eu descobri que tinha. Só que o do meu irmão era ativo e já estava prejudicando, mas o meu, não".
A suspeita da família é de que os irmãos tenham contraído o vírus ao utilizarem o barbeador do pai, antes de terem conhecimento da doença e seus riscos.
De acordo com dados e fontes do Ministério da Saúde, em geral, a hepatite C é descoberta em sua fase crônica e aproximadamente 80% das pessoas com a doença não apresentam sintomas. Para os 20% sintomáticos, o período entre a infecção e o início dos sintomas varia de duas a 12 semanas, com sintomas que incluem principalmente febre, fadiga, náusea, vômito, diarreia, dor abdominal, urina escura e icterícia.
O vírus presente no corpo de Fábio era bastante resistente e ele teve complicações como infecções e hemorragia, de acordo com Mary. "Caía cabelo, emagrecia, tinha febre, dor no corpo... E o tratamento dele não estava tendo sucesso", lembra. Já muito debilitado, ele entrou na "fila" do transplante, o qual realizou em 2014, no Hospital São Rafael, em Salvador.
Ao mesmo tempo, Mary - que até então apresentava um vírus negativado - passou por uma série de internações em um período de dois anos. Era internada, melhorava e voltava para o hospital repetidas vezes. Fez, inclusive, três ligaduras de varizes do esôfago, preventivas, acompanhada do hepatologista Marcelo Costa, de Ipiaú.
"Minha barriga crescia muito, tirava muito líquido e também apareceu líquido pleural (no pulmão). Tinha que dormir sentada. Foi quando piorei muito e tive encefalopatia hepática, que é quando o sangue do corpo é contaminado pelas fezes e volta para o cérebro contaminado".
Era hora de transplantar.
Mary Lúcia veio para Salvador e ficou no topo da prioridade para receber um novo fígado, mas não aparecia um doador compatível. A equipe médica, então, transferiu a baiana para Fortaleza, no Ceará. "Estava tão ruim que fiquei internada no Hospital das Clínicas, depois da consulta. Disseram que, se eu voltasse, poderia morrer no avião. Meu pulmão não parava de produzir líquido. Cheguei a colocar três drenos de tórax", explica.
"Quando me liberaram para voltar, já cheguei em situação crítica em Ipiaú. Passei a noite toda internada. Fiquei 42 dias internada e me chamaram para transplantar em Fortaleza. Fui para lá no dia 10 de abril de 2016, como primeira da fila do transplante, pela encefalopatia hepática".
Acompanhada da filha, Jasmin, e da irmã, Leda, Mary alugou um apartamento na capital cearense para aguardar o chamado mas, de primeira da fila, virou terceira. Das duas que estavam em situação ainda mais crítica, uma tinha a mesma a idade da baiana, 51, e outra tinha 18 anos. Infelizmente, elas vieram a óbito antes de qualquer transplante.
Passados 15 dias, em 25 de abril de 2016, a comerciária voltou ao Hospital São Carlos para tirar raio-x do pulmão e o médico avisou que havia aparecido um fígado naquele dia. "Mas ele pediu que eu não me enchesse de esperança, porque tinha que ver o tamanho, o tipo sanguíneo... Depois fui chamada e falaram que era compatível".
"Até a hora de transplantar, não tinha 100% de certeza, porque enquanto uma equipe cuidava de mim, outra cuidava do fígado. Graças a Deus, deu tudo certo. Foram oito horas de procedimento e correu tudo bem. Fiquei três dias na UTI e mais quatro em um quarto, em observação", acrescenta.
No pós, ela ficou "muito inchada", apesar de estar bem, dentro do esperado, e os cuidados foram redobrados. Ela ficou isolada e a higienização de tudo era muito cuidadosa, para evitar infecções. "Comecei a desinchar e a sentir o meu corpo de volta. Minha pele clareou. Os olhos azuis, que tinham ficado amarelados, foram voltando… e a sensação de bem-estar".
Houve um susto, entretanto: depois de aproximadamente duas semanas, o corpo parecia tentar rejeitar o novo órgão. "Fiquei meio 'borocoxô', sem coragem, mas foi algo rápido". Aumentaram a dosagem do medicamento, os exames semanais e, enfim, após quatro meses no Ceará, Mary retornou à Bahia.
Com as experiências na família, a comerciária ingressou, no início dos anos 2000, em um grupo de apoio chamado "Nova Vida", voltado às pessoas vivendo com hepatites virais. Ela segue no projeto até hoje, assim como o irmão, com um trabalho que consiste na realização de testes e conscientização a respeito da doação de órgãos, "para que as pessoas não cheguem ao ponto de transplantar".
[caption id="attachment_382292" align="alignnone" width="700"] Mary e Fábio (meio) em reunião do Grupo Nova Vida | Foto: arquivo pessoal[/caption]
"Uma pessoa pode doar vários órgãos e salvar a vida de muita gente", afirma. "É preciso dizer sim para a doação; saber que o órgão de seu filho, esposo(a) está vivo em outra pessoa; é importante doar e é preciso trabalhar a cultura da doação no Brasil", declara.
Cabe destacar que, passados oito anos do transplante de fígado, Mary continua com o vírus, mas ele está negativado. Assim, o tratamento segue apenas com comprimidos e ela sente, no máximo, uma dor de cabeça.
"Hoje cuido mais da saúde, pratico exercício, tenho uma boa alimentação... Não tenho nenhuma restrição, exceto o álcool, para não inflamar o fígado de novo. Levo uma vida melhor que antes", conclui.
[caption id="attachment_382291" align="alignnone" width="700"] Mary conduzindo encontro do Nova Vida | Foto: arquivo pessoal[/caption]
Para reforçar a "cultura da doação", como diz Mary, foi criado - no ano passado - o Dia Nacional da Doação de Órgãos, celebrado nesta sexta-feira, 27 de setembro, para chamar atenção à causa. Além disso, este mês também é chamado de "Setembro Verde" com o mesmo objetivo.
Na Bahia, de acordo com o coordenador do Sistema Estadual de Transplantes, Eraldo Moura, a campanha do Setembro Verde tem bons resultados, mas, de forma geral, ao longo do ano, o estado ainda está um pouco abaixo da médica nacional.
"A gente tem crescido bastante, nos últimos anos, o número de doações [de órgãos] e também de transplantes. O objetivo é atingir e até ultrapassar a média nacional", afirma Moura. "Hoje, a gente realiza, no estado, o transplante de coração, rim, fígado, medula óssea, córnea e está em fase de implantação do transplante de pulmão", acrescenta.
Ainda de acordo com o coordenador, a Bahia é o quarto estado em número de identificação de potencial doador no Brasil, além de referência quando o assunto é transplpante renal. Em 2023, foi o terceiro estado que mais realizou transplante renal pediátrico, e o Hospital Ana Nery é o quarto maior centro transplantador desse órgão.
Em contrapartida, a Bahia tem um grande índice de negativa familiar, segundo Eraldo Moura. Gira em torno de 60% a 70% o número de famílias que negam a doação dos órgãos dos seus entes. "Já foi 80%, então a gente está reduzindo com ações de informação para a sociedade, e capacitando profissionais da saúde, que é outro fator importante", comenta.
"A doação é o último ato de amor que a gente pode deixar para a sociedade, de ajudar outras pessoas", finaliza Moura.
TRANSPLANTES NO BRASIL
Em números absolutos, o Brasil é o segundo maior transplantador do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Apesar do grande volume de procedimentos de transplantes realizados, a quantidade de pessoas em lista de espera para receber um órgão ainda é grande. Segundo dados do Ministério da Saúde, em julho deste ano, mais de 43 mil pessoas estavam na "fila" de transplante de órgãos no país.
É preciso pontuar que o termo “fila” não é o mais adequado, visto que se trata de uma lista cuja prioridade do transplante varia de acordo com alguns critérios. A ordem de chegada é o primeiro deles, mas é possível que alguém que entrou agora na lista seja transplantado antes de outra pessoa que está aguardando há mais tempo, por exemplo, a depender da gravidade do paciente.
LISTA DE ESPERA
Para entrar na lista de espera de transplante, o médico do paciente precisa cadastrá-lo na lista única. Os receptores (pacientes que estão na fila) são separados de acordo com as necessidades e conforme o órgão que necessita, tipos sanguíneos e outras especificações técnicas.
Esse sistema de lista única tem ordem cronológica de inscrição, sendo os receptores selecionados desse modo, em função da gravidade ou compatibilidade sanguínea e genética com o doador. Porém, a distribuição de órgãos depende de outros critérios além do tempo na fila, que variam de acordo com o órgão a ser transplantado e suas devidas necessidades.
Os critérios de desempate são diferentes de acordo com o tipo de órgão ou tecido, e a gravidade é motivo de priorização ou de atribuição de situação especial. Vale destacar que crianças têm prioridade quando o doador é criança ou quando estão concorrendo com adultos.
E QUEM SÃO OS DOADORES?
Existem dois tipos de doadores: o falecido, paciente com morte encefálica, geralmente vítima de catástrofes cerebrais, como traumatismo craniano ou AVC (derrame cerebral), e o vivo. Neste caso, pode ser qualquer pessoa que concorde com a doação, desde que não prejudique a sua própria saúde. É possível doar um dos rins, parte do fígado, parte da medula óssea ou parte do pulmão. Pela lei, parentes até o quarto grau e cônjuges podem ser doadores, caso compatíveis.
Se você tem vontade de ser doador post mortem (após a morte), o primeiro passo é avisar sobre sua escolha aos seus familiares, pois não há, pela legislação brasileira, como garantir efetivamente a vontade do doador. Contudo, de acordo com o Ministério da Saúde, observa-se que, na maioria dos casos, quando a família tem conhecimento, o desejo é respeitado.
Após autorização da doação, será realizada coleta de sangue, para análise da presença de anticorpos do HIV, hepatite B e C, HTLV, sífilis, doença de Chagas, citomegalovírus e toxoplasmose, além dos exames gerais de avaliação do fígado e rins principalmente. Depois de realizadas todas as avaliações, o doador é encaminhado para a cirurgia de retirada de órgãos.
CAPTAÇÃO DOS ÓRGÃOS
A Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (Central de Transplantes) é notificada e repassa a informação para uma Organização de Procura de Órgão (OPO) da região. A OPO se dirige ao hospital e examina o doador, revendo a história clínica, os antecedentes médicos e os exames laboratoriais. A viabilidade dos órgãos é avaliada, bem como a sorologia para afastar doenças infecciosas e a compatibilidade com prováveis receptores.
A OPO informa a Central de Transplantes, que emite uma lista de receptores inscritos, compatíveis com o doador. No caso de transplante de rins, deve-se fazer ainda uma nova seleção por compatibilidade imunológica ou histológica. A central, então, informa a equipe de transplante e o paciente receptor nomeado. Cabe à equipe médica decidir sobre a utilização ou não do órgão.
TEMPO DE ISQUEMIA
Embora todo transplante seja complexo, a logística de um transplante cardíaco, assim como de pulmão, também é mais complicada, de acordo com Luiz Ritt. “Você tem seis horas, entre o coração ser retirado e estar batendo no receptor. É preciso de uma equipe fazendo a retirada, outra para o transporte e outra pronta para colocar no receptor”, diz. Esse tempo que o órgão tem até ser transplantado é chamado de “tempo de isquemia”.
PÓS-OPERATÓRIO
No pós-operatório, pode haver rejeição ao órgão. Mas, segundo o cardiologista Luiz Ritt, os protocolos são muito bem elaborados, atualmente, além da utilização de medicação imunosupressora, e as taxas de rejeição caíram muito.
“Quando o coração é retirado do doador e vai para o receptor, tem que ser acondicionado de uma forma que não sofra, para não ter necrose e/ou perda de células e músculo cardíaco. A cirurgia tem que ser muito bem feita”, conclui.
LEIA MAIS: Como funciona a lista de espera por um transplante de órgão no Brasil? Aratu On Explica
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