Arquitetura hostil em Salvador: grades, cactos e bancos com divisórias afastam pessoas em situação de rua
Técnicas proibidas por leis federal e municipal são observadas na cidade; prefeitura nega que situações sejam irregulares
Bancos de praça com divisórias no meio, grades e estruturas pontiagudas em superfícies. Todas essas são formas de afastar pessoas de locais públicos. São técnicas construtivas agressivas, mais conhecidas como “arquitetura hostil”, que afetam principalmente a população em situação de rua (mas não só).
Segundo o arquiteto e urbanista Victor Gonzalez, o tema é estudado desde a década de 1990. “Esse afastamento é feito de maneira silenciosa e normalmente atinge pessoas com pouco poder social, com a construção de muros, grades e cercas em praças, construções sem marquise e bancos com braços metálicos para evitar que pessoas possam deitar”, pontua.
A prática, mais comum em grandes cidades, está associada à aversão aos pobres, ou “aporofobia”, termo criado em 2017 pela filósofa espanhola Adela Cortina. A palavra, que une duas expressões gregas - “á-poros” (pobre, sem recursos) e “fobos” (medo, aversão, ódio), - ficou mais conhecida no Brasil por meio do padre Júlio Lancellotti, de São Paulo, que promove trabalhos sociais desde a década de 1980 e denuncia situações assim, frequentemente, nas redes sociais.
A postura engajada do pároco, inclusive, foi inspiração para a Lei 14.489, de 2022, de âmbito nacional, que leva seu nome e proíbe a arquitetura hostil no país. O projeto que deu origem à lei, de autoria do senador Fabiano Comparato (PT-ES), chegou a ser vetado pelo então presidente, Jair Bolsonaro (PL), mas o veto foi derrubado pouco depois pelo Congresso Nacional.
Padre Júlio também teve influência na capital baiana, onde um projeto de lei foi sancionado em abril deste ano, pelo prefeito Bruno Reis (União Brasil). Com a referência de Comparato e proposto pela vereadora licenciada Maria Marighella (PT-BA), atual presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte), o texto altera o Código de Polícia Administrativa do Município do Salvador e foi construído em diálogo com o Movimento População de Rua e com o Padre Júlio Lancellotti.
No artigo 169-A do Código consta que "é vedado o emprego sobre passeios e espaços públicos de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas construtivas hostis que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população". Diz ainda que "a prefeitura não concederá alvará aos projetos que violem o conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público".
De acordo com Maria Marighella, o ‘estopim’ para a mudança na lei foi quando uma situação de arquitetura hostil em Salvador ganhou repercussão nacional, no final de 2021. Um restaurante de alto padrão, situado em um bairro nobre da cidade, colocou “garras” ao redor de um canteiro de tijolos, e essa estrutura cortante ficava na calçada, em frente ao estabelecimento. “Uma coisa perigosíssima”, afirma a presidente da Funarte ao Aratu On.
“Nós denunciamos, à época, e isso ganhou repercussão nas redes, em outras cidades, e muitas pessoas marcaram o padre Júlio. Fui ao encontro dele e foi ele próprio quem sugeriu [a legislação municipal]”, conta. “Mesmo com a aprovação no Senado, ele entendia que as cidades também deveriam propor projetos de lei para visibilizar que o uso dessa técnica é muito mais usual do que a gente podia imaginar”, completa Marighella.
A vereadora licenciada ressalta, ainda, que muitas vezes esse recurso aparece de “forma lúdica”, ou com técnicas mais “sutis”, mas com a mesma ideia de “expulsar do espaço público a população mais vulnerável”. “Não é só o que é mais ‘violento’, com garras, tridentes e metal que furam ou cortam. São pontos de ônibus sem espaço para o descanso, que não têm sombra, bancos com ondas, cactos sob viadutos… técnicas variadas, desde as mais violentas e segregadoras, às disfarçadas”, pontua.
Apesar da legislação vigente, ainda são encontrados espaços, em Salvador, com técnicas hostis (confirmadas ao Aratu On pelo arquiteto Victor Gonzales). A equipe de jornalismo do site registrou alguns desses pontos. Confira:
- Os bancos do ponto de ônibus em frente ao Cine Glauber Rocha, no Centro, são separados por braços que impedem que alguém se deite. O mesmo ocorre do outro lado da rua, na Praça Castro Alves.
[caption id="attachment_248936" align="alignnone" width="740"] Ponto em frente ao Cine Glauber Rocha, Centro | Foto: Aratu On[/caption]
[caption id="attachment_248988" align="alignnone" width="740"] Ponto de ônibus na Praça Castro Alves | Foto: Aratu On[/caption]
- As grades colocadas em frente ao Hub Salvador, no bairro do Comércio, também se enquadram. "São exemplos mais comuns. Inclusive considero as grades do Campo Grande e da Piedade exemplos, também, de arquitetura hostil, apesar de serem obras de arte baseadas em desenhos de Caribé", diz Gonzales.
[caption id="attachment_248990" align="alignnone" width="740"] Foto: Aratu On[/caption]
Imagem: reprodução/Google Maps
- Cactos sob viaduto na Avenida Reitor Miguel Calmon, no bairro do Canela. A cena gera dúvidas, por se tratar de vegetação, mas também é uma tática utilizada, segundo o arquiteto. Inclusive o local já foi tema de debate, em 2015, pelo mesmo motivo. À época, Bruno Reis - então secretário de Promoção Social e Combate à Pobreza (Semps) - falou que as plantas estavam lá "há bastante tempo".
"Quando eu entrei, todos os viadutos estavam sendo ocupados por pessoas em situação de rua e, através de nossas equipes de abordagem, que dobramos o quantitativo, conseguimos convencê-los a ir para nossas unidades de acolhimento", disse, na ocasião, ao site Bahia Notícias.
[caption id="attachment_248813" align="alignnone" width="740"] Foto: Aratu On[/caption]
Em outros espaços, como o "Pela Porco", na Rua Cônego Pereira, na região das Sete Portas, e sob o viaduto do Politeama, perto do Orixás Center, há estruturas que também causam dúvidas. São espécies de esculturas em forma de bolas e pássaros, coloridos, colocados na calçada e no canteiro central. Nesses casos, Victor Gonzales diz não ter achado referências nos estudos que ele conhece.
Porém, de acordo com o defensor público do estado da Bahia, Armando Fauaze, "todo obstáculo que dificulte acesso das pessoas em situação de rua às praças, viadutos, túneis e demais logradouros públicos são considerados arquitetura hostil".
[caption id="attachment_248246" align="alignnone" width="732"] Estruturas geométricas sob o viaduto do Politeama | Foto: Aratu On[/caption]
Esculturas em forma de pássaros na região das Sete Portas | Foto: Aratu On
Calçada na região das Sete Portas | Foto: Aratu On
Segundo a Companhia de Desenvolvimento Urbano de Salvador (Desal), as peças são, originalmente, parte do mobiliário urbano, colocadas em diferentes locais da cidade. Ao site, o órgão informou que a instalação foi feita há cerca de seis anos como forma de "compor o paisagismo", além de evitar, na região das Sete Portas, que jogassem lixo. Pontuou, contudo, que irá consultar um corpo técnico para avaliar se infringe, ou não, a legislação.
PONTOS DE ÔNIBUS SERÃO TROCADOS
Procurada pelo Aratu On, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Sedur) informou que "os abrigos de ônibus estão sendo substituídos por modelos mais modernos". Quanto às outras situações, disse não ter identificado técnicas construtivas hostis, pois os cactos integrariam com a vegetação e as grades podem ter sido colocadas "por questão de segurança".
Por meio de nota, afirmou que "os processos de licenciamento são analisados de acordo com as legislações vigentes e não permite a instalação de técnicas construtivas hostis. Caso seja identificada alguma irregularidade, o órgão notifica o responsável para realizar a remoção das estruturas".
DESIGUALDADE E FISCALIZAÇÃO
Para Maria Marighella, para que Salvador seja uma cidade justa, é preciso proteger toda a sua população e garantir conforto nos espaços públicos. “A classe média e classe média/alta estão em espaços acolhedores, arborizados, com uma estética pública agradável, que muitas vezes se assemelham a países desenvolvidos ou ricos, enquanto a população pobre vulnerável está sem conforto ambiental, em espaços com desmatamento e onde essas técnicas são mais usuais”, reflete.
Ela destaca, ainda, a importância da participação do cidadão para ajudar a cobrar a proibição dessas práticas, bem como a de órgãos fiscalizadores: “A Câmara Municipal é um ambiente para fiscalizar o poder Executivo. A sociedade precisa entender que é papel constitucional da Casa legislativa fiscalizá-lo, seja através da ouvidoria, das comissões de desenvolvimento urbano, frente parlamentar mista ambientalista, do vereador que o cidadão elegeu”.
Outros órgãos que podem auxiliar nesse sentido são o Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA), como complementa o defensor público Armando Fauaze, titular da 2ª Defensoria Especializada em Direitos Humanos, que compreende os núcleos de População em Situação de Rua e de Saúde Mental. "As nossas instituições estão aí, justamente para garantir direitos", crava.
Segundo ele, a DPE tem atuado de forma extrajudicial em relação às técnicas construtivas hostis. "Sendo uma instituição permanente, essencial à função judicial do Estado, a Defensoria também é um órgão processante. Como tal, acompanha, monitora e faz, regularmente, audiências extrajudiciais", explica Fauaze.
"Nós fazemos a visita institucional e vamos em busca de eliminar, paulatinamente, esses obstáculos que são colocados nas vias públicas para dificultar o acesso das pessoas vulnerabilizadas", salienta, acrescentando que não é algo muito fácil, mas que o órgão tem obtido êxito. "Há contra-argumentos, mas a gente tem conseguido resolver algumas coisas", comemora.
Ainda conforme Fauaze, os últimos dados que a DPE-BA registrou são de 2017, indicando que aproximadamente 18 mil pessoas estavam em situação de rua, em Salvador. Um novo censo deve ser divulgado ainda neste mês de setembro, em parceria com a Secretaria Municipal de Promoção Social, Combate à Pobreza, Esportes e Lazer (Sempre) e o Projeto Axé.
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