Tecnologia

O amor nos tempos da inteligência artificial: você namoraria um robô?

Cristian Arão
Colunista On: Cristian ArãoPesquisador em nível de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Brasília (UNB), atualmente investiga os impactos da inteligência artificial na sociedade. É doutor, mestre e graduado em filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Nesta coluna escreve sobre como as novas tecnologias têm influenciado o comportamento humano.

O filme "Ela", de 2013, estrelado por Joaquin Phoenix, narra a história amorosa de um escritor solitário que se apaixona por um programa de computador feito para simular o comportamento de uma pessoa real.


Hoje, dez anos depois, histórias como essa são cada vez menos raras. Já é possível encontrar aplicativos muito parecidos com o software do filme. Replika e Xiaoice são dois exemplos de apps que possibilitam a criação de inteligência artificial capaz de conversar com o usuário se adaptando às necessidades e gostos.


cena do filme "Ela"

cena do filme "Ela"



Cena do filme "Ela" (2013) / reprodução

Embora as empresas responsáveis por esses programas os definam como aplicativos que podem oferecer um amigo pessoal, muitas pessoas acabam se apaixonando por esses robôs. O Xiaoice possui mais de 600 milhões de usuários ao redor do mundo e dentre esses, mais de 100 milhões se declaram apaixonados pela inteligência artificial que interagem.


Essa grande quantidade de pessoas talvez indique que o perfil dos usuários que se apaixonam pelos seus robôs personalizados não se resume a indivíduos com problemas de socialização e dificuldades para construir relações com pessoas reais. Existe um contexto social que faz com que muita gente não pense ser absurda a ideia de ter um parceiro virtual.


Em primeiro lugar é importante destacar o fato de que trabalhamos e estudamos cada vez mais. Assim, sobra pouco tempo para criar e cultivar relações amorosas ou de amizade. Esse foi o argumento dado por Melissa, uma nativa de Pequim e usuária do Xiaoice.


"Todo mundo está fazendo hora extra, então achamos que devemos fazer o mesmo. Não temos tempo para fazer amigos e os amigos que temos também estão muito ocupados".


Além disso, creio que haja um outro fator de suma importância que contribui para esse fenômeno social: a idealização do par perfeito em uma época de narcisismo acentuado.


Sabe-se que o romance idealizado não é um problema exatamente novo e sabe-se também que a idealização causa frustrações porque a vida real não corresponde com o que foi sonhado. Contemporaneamente, essa relação entre o real e o sonhado é ainda mais complicada porque vivemos numa era em que nos interessamos cada vez mais por nós mesmos, tal qual Narciso que se apaixona pela sua própria imagem refletida como conta o mito.


A historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco argumenta que essa forma de ver o mundo faz com que passemos a aceitar menos as diferenças. Ainda que tenhamos apreço pela tolerância, não queremos conviver com o que não é semelhante.


Nesse contexto, o parceiro ideal é simplesmente nosso reflexo. A busca aqui não é somente por pessoas que partilhem das mesmas crenças ou valores fundamentais; o par perfeito deve ser nossa imagem e semelhança. Como no mundo real é muito difícil encontrar pessoas que partilhem das mesmas idiossincrasias, parceiros virtuais têm sido a solução para muitas pessoas.


A inteligência artificial torna-se sedutora, porque é uma espécie de amor personalizado. Com a tecnologia do aprendizado de máquina, o software reconhece padrões que permitem conhecer a personalidade da pessoa mapeando seus desejos, medos, preferências etc.


A partir daí o programa age de acordo com a idealização do usuário de modo a se adaptar a todas as demandas. É como se a inteligência artificial fosse um molde que se transforma de acordo com a geografia da personalidade do indivíduo criando um encaixe perfeito, como uma peça de um quebra-cabeças ou de lego.


Como o objetivo da inteligência artificial é se moldar, ela nunca vai desapontar, nem reclamar, nem desejar algo diferente do que o usuário gostaria. É , portanto, uma relação sem discordâncias, desentendimentos e desavenças.


Por mais insólito que possa parecer, o interesse amoroso de pessoas por linhas de código é um fenômeno que saiu dos filmes de ficção científica e é uma realidade para muita gente. O sucesso dos robôs amantes, contudo, não se dá exclusivamente pela competência dos programadores em criar inteligências artificiais que conseguem simular o comportamento humano.


O nosso modo de vida que cultiva “eu soberano” é um terreno fértil para que busquemos relações idealizadas com pessoas que sejam iguais a nós. Nesse contexto, o avanço da tecnologia supre a fantasia de ter alguém sob demanda.


Acredito que esse fenômeno não é somente uma extravagância despropositada, mas o reflexo de uma sociedade que se orgulha em não lidar com a diferença. Muitos de nós não temos ou teremos um amante robô, mas ainda assim, analisando nossas relações passadas e presentes, compreendemos o que motiva as pessoas a recorrerem à inteligência artificial.


Em uma época onde tudo é personalizado (as propagandas, as bolhas das redes sociais, as sugestões do que assistir ou ouvir etc.), a ideia de um parceiro romântico sob demanda e sob controle surge como mais uma forma de personalização que alimenta nosso narcisismo.


Hoje, esse romance de pessoas com robôs ainda se dá de forma virtual. No entanto, é possível imaginar que em um futuro próximo, empresas fabriquem robôs físicos para encarnar essas inteligências artificiais. Quando esse momento chegar, o que será que acontecerá?


*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Aratu On.

Importante: Os comentários são de responsabilidade dos autores e não representam a opinião do Aratu On.

Cristian Arão

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