Privilégios avançam sem pudor e reafirmam a falta de consciência cidadã do brasileiro
O Brasil vive repetindo a mesma cena, como novela que nunca termina: a cada semana surge um novo privilégio, uma nova brecha criada para proteger quem já está no topo da máquina pública.
O capítulo da vez é a licença compensatória que pode levar supersalários do Senado a ultrapassarem R$ 117 mil brutos até 2029. Amanhã será outra invenção. Depois de amanhã, outra explicação ensaiada para justificar o injustificável.
A verdade é simples, embora desconfortável: a toda hora, o país leva um tapa na cara e, mesmo assim, grande parte da sociedade não acorda.
Por quê?
Porque existe um tipo específico de analfabetismo que não se resolve com escola tradicional nem com slogans prontos. É o analfabetismo da cidadania: a incapacidade coletiva de compreender como o Estado funciona, como se financia, como distribui privilégios e como dribla as próprias leis.
E a cura para esse analfabetismo não é retórica. É educação. É o amadurecimento da inteligência cidadã.
Quando a austeridade serve só para o povo
Ninguém precisa ser especialista para perceber a contradição que tomou conta da vida pública brasileira.
Para o trabalhador comum, o discurso é sempre o mesmo: “Não pode aumentar salário. Não há espaço fiscal.”
Para quem já ganha acima do teto constitucional, a criatividade floresce: trabalha três dias, folga um; folga remunerada; indenização por não folgar; penduricalho fora do teto; salário impulsionado para patamares que beiram o inacreditável.
Essa engenharia não é acidente; é método. E é por isso que o debate da jornada de trabalho virou uma hipocrisia institucionalizada.
O povo brasileiro não quer trabalhar menos. O povo quer ganhar mais, quer viver com dignidade, quer chegar ao fim do mês sem medo.
Reduzir jornada sem elevar salário é distribuir o mesmo sofrimento em porções menores. Já para os marajás do Estado, reduzir jornada significa ganhar mais.
É ou não é um tapa na cara do país?
O problema não é técnico. É moral, cultural e estrutural.
Quando um ato administrativo interno é capaz de driblar o teto constitucional, criar folgas remuneradas e inventar indenizações sem impacto fiscal estimado, o erro não está apenas no dispositivo jurídico. Está na cultura política que normaliza o privilégio.
Enquanto isso, a maioria dos brasileiros recebe salário mínimo, um valor que simplesmente não cumpre a própria função constitucional: garantir existência digna.
O país aceita, sem perceber, uma lógica perversa: austeridade para baixo; benevolência para cima. E esse é o tipo de distorção que só persiste porque falta aquilo que poucos ousam dizer de forma direta: a cura do analfabetismo da inteligência cidadã é a educação para o despertar do exercício da cidadania. Sem isso, continuaremos discutindo os sintomas enquanto perpetuamos a doença.
O que está em jogo não é um governo, não é um Senado, não é um episódio: é a República. O Brasil não está falhando porque a Constituição é fraca. Estamos falhando porque a sociedade não exerce a sua parte na equação republicana. A democracia não é um espetáculo em que os cidadãos sentam na plateia esperando que os “protagonistas” salvem o enredo. E, aliás, não há protagonistas: há corresponsáveis.
É por isso que o tema dos supersalários é mais do que um escândalo momentâneo. É um espelho. Um lembrete incômodo de que a República só funciona quando o povo enxerga, compreende, fiscaliza e se coloca como sujeito do processo democrático.
A verdade inconveniente
A cada novo privilégio revelado, a sensação é a de que o país anda para trás. Mas o retrocesso não é inevitável. Ele só persiste quando a cidadania dorme.
Por isso, repito sem rodeios: o Brasil só despertará quando compreender que a inteligência cidadã não é um conceito acadêmico; é instrumento de sobrevivência. Enquanto não houver educação cívica capaz de formar consciência ativa, crítica e vigilante, continuaremos a assistir, impotentes, ao espetáculo de privilégios financiados por quem mal consegue pagar as próprias contas.
O país que não aumenta o salário mínimo porque “não tem dinheiro” é o mesmo que cria mecanismos para elevar ainda mais a renda de quem já está no topo da máquina pública.
Essa é a verdade inconveniente, e só existe um caminho para rompê-la: a educação para o exercício pleno da cidadania. A única força capaz de acordar uma nação que, a toda hora, leva um tapa na cara, mas ainda não abriu os olhos.
*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Aratu On
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