Igreja cria amorprazol e promete tratamento antidivórcio. Especialista contesta
Igreja cria amorprazol e promete tratamento antidivórcio. Especialista contesta
Com o rótulo de um remédio convencional, o amorprazol é indicado para todas as famílias que buscam “uma revolução de amor”. O nome soa comum aos ouvidos. Isso porque o produto gospel, espécie de jogo criado pelo Ministério Família Debaixo da Graça, com sede em Bragança Paulista (SP), foi inspirado no medicamento omeoprazol, usado para combater problemas gástricos. O poder antidivórcio, segundo o líder evangélico Josué Gonçalves, está dentro de cada uma das dez cápsulas, que guardam papéis com “princípios bíblicos ativos”.
Apesar de carregar uma bula – com informações ?aos pacientes?, composição em miligramas e posologia -, o produto não é um remédio que deve ser ingerido. A editora Mensagem para Todos, que comercializa o amorprazol a R$ 5 em sua loja virtual, o apresenta como uma dinâmica inteligente com o poder antidivórcio, antiseparação e anticonflitos. ?As pessoas sabem que não é para tomar porque o pastor explica isso no vídeo. É uma dinâmica familiar?, esclarece uma funcionária de televendas do grupo ao iG.
O pastor Josué foi procurado pela reportagem para dar maiores informações sobre a criação do produto e o índice de vendas. Aceitou responder por e-mail, mas apenas enviou sua trajetória ministerial e a dinâmica do amorprazol. Não respondeu as perguntas do iG. Segundo o texto, o produto é feito por famílias carentes de Bragança Paulista, que recebem parte do lucro das vendas.
Para participar do jogo, que leva o nome de Jesus Cristo como o responsável técnico, cada familiar deve retirar um comprimido e ler seu conteúdo sem revelar aos outros. As opções são: abraço, bíblia, beijo, diálogo, elogio, lazer, oração, presente, serviço e surpresa. E durante a semana cada um coloca em prática a sua tarefa. Ao final da primeira etapa, todos devem descobrir a atividade que cada um realizou.
?Não é para tomar, irmão?
?Após as descobertas todos devem orar juntos e retirar mais um comprimido para a próxima semana. O uso da amorprazol é continuo e não deve ser interrompido até a conquista definitiva dos propósitos de Deus para a família. Esse tratamento é para vida toda?, diz o texto da pequena bula. Em sua loja virtual, o pastor Josué Gonçalves orienta os fiéis em vídeo sobre não ingerir as falsas pílulas. ?Por favor, isso aqui não é para tomar não. Outro dia o irmão comprou e já foi direto para tomar uma cápsula”, conta.
A proposta do amorprazol de provocar maior interação familiar é avaliada positivamente pela psicoterapeuta Silvana Rangel. No entanto, está longe de ser milagrosa, ela pondera. ?Acredito que toda interação entre a família proporciona pequenas mudanças, mas prometer a revolução do amor é algo muito complicado. Se todos os dias o familiar te dá um abraço, um beijo, vai provocar uma mudança positiva, claro. Porém, temporária.?
Para Silvana, que também atua como coach especialista em relacionamentos, provocar uma interação forçada, sem autorreflexão dos próprios sentimentos e sem a participação de um profissional mediador, pode gerar ainda frustração e sentimento de inferioridade. ?O ponto delicado é ligar a religião com essa prática psicológica. Ao final a pessoa ainda pode acabar com o pensamento: ?Deus não me ama? ou ?não sou merecedor?.
A apresentação do produto, que parece remédio mas não é, também preocupa a profissional de terapia familiar. Silvana acredita que a apresentação do amorprazol foi pensada para atrair pessoas que buscam soluções em remédios. ?Todos os medicamentos, principalmente usados em comportamento, anestesiam o que você está sentido. Mas quando o tratamento é interrompido, os sentimentos irão voltar. Executar ações repetitivas por um curto período de tempo significa jogar todos os problemas da família para debaixo do tapete.”
Normalmente, explica a profissional, uma pessoa leva 21 dias consecutivos ou cem repetições para construir novos hábitos. “É por isso que é tão baratinho. Não existe milagre. A reconstrução do ambiente familiar exige muito mais do que esforços semanais.”