Aratu Comunidade – Símbolo da resistência na Paralela tem nome: Bairro da Paz; conheça
Aratu Comunidade – Símbolo da resistência na Paralela tem nome: Bairro da Paz; conheça
A partir deste mês de setembro, o Aratu Online inicia uma série de reportagens que vai mostrar aos seus leitores, algumas particularidades das mais variadas comunidades de Salvador.
O projeto “Aratu Comunidade” surge com o objetivo de publicar a riqueza e a diversidade cultural de pessoas que, mesmo convivendo com situações adversas, conseguem mostrar o seu brilho, através da superação. E o melhor! Quer aparecer aqui e contar a história do seu bairro? Nos mande um e-mail: jornalismo@aratuonline.com.br
Nesta primeira edição fomos ao Bairro da Paz e tivemos a grata satisfação de conhecer uma comunidade altamente coesa e envolvida com a sua história.
Boa leitura!
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Manhã ensolarada de uma terça-feira! Nossa reportagem chega a uma das regiões mais privilegiadas de Salvador. O local está no entorno de duas das mais importantes avenidas da capital? Luís Viana (Paralela) e Orlando Gomes ?, e distante poucos quilômetros do bairro de Itapuã, assim como do Aeroporto Internacional Luís Eduardo Magalhães.
Alguns dos endereços residenciais da vizinhança reúnem moradores que possuem uma situação econômica entre as mais favorecidas da sociedade soteropolitana. É o caso, por exemplo, daqueles que têm o privilégio de habitar e desfrutar do luxo e da segurança de condomínios como o Alphaville, que fica bem pertinho.
Chegamos, então, ao Bairro da Paz! Por volta das 8h15, nossos “guias” aguardavam para nos ajudar a conhecer a comunidade e entender um pouco do processo histórico de sua formação. Os jornalistas Paulo de Almeida e Anderson França, além do cinegrafista Bira Mendes, tiveram, inicialmente, esta missão.
Os rapazes são integrantes do Bairro da Paz News, veículo de comunicação local que tem uma página no Facebook. O encontro aconteceu no final de linha dos ônibus, mas o bate-papo seguiu rolando por outros pontos. Paulo fazia as honras da casa com a colaboração dos dois repórteres, que cuidavam de registrar a visita.
À primeira vista, não é preciso muito esforço para perceber o contraste da infraestrutura do local, comparado à vizinhança privilegiada que está ao seu redor. O Bairro da Paz é uma ?periferia? inserida em um núcleo valorizado de Salvador. Muito, ainda, é preciso ser feito para melhorar a qualidade de vida da sua população.
Porém, quem acha que a situação é motivo para baixar a autoestima dos moradores, provavelmente, nunca esteve por lá. O sentimento de orgulho e pertencimento que eles têm é muito grande e é fruto, considera Paulo, da formação política e cultural que são características de seu povo.
A razão para tudo isso é muito simples: a comunidade se formou há 36 anos em meio a um processo de intensa luta. Os primeiros moradores, por conta da carência e necessidade de habitação, ocuparam a região ainda sem qualquer possibilidade de moradia e, até então, localizada em um espaço pouco prestigiado.
Foram pessoas que chegaram de diversos cantos da cidade e, até mesmo, de outras regiões, fora de Salvador. Ali, buscaram se estabelecer e proporcionar condições de vida às suas famílias, mas para isso tiveram que enfrentar e resistir às ações da polícia, já que o Município defendia os direitos de propriedade da área ocupada.
Inicialmente, nos idos da década de 80 do século passado, inúmeras famílias conviveram com uma batalha constante. Eram frequentes, as derrubadas de casas e barracos promovidas pelas autoridades públicas. À época, o assentamento ficou conhecido como Invasão das Malvinas, alusão à uma guerra internacional travada, no mesmo período, entre a Grã-Bretanha e a Argentina.
Dentro desse contexto histórico, a Praça das Decisões, local onde iniciamos a nossa caminhada de visitação é dos mais representativos da comunidade. ?Foi aqui que começou todo o processo de mobilização dos moradores e a primeira ocupação do bairro?, menciona Paulo.
Hoje, cada ponto importante do seu espaço geográfico é batizado com um nome que faz referência à conquista alcançada pela resiliência de seus fundadores. A Rua da Resistência, a mais longa e principal do Bairro da Paz, tem essa relevância.
Por lá, existem, também, outros marcos importantes. São os casos da Praça Celestial, do Alto do Sossego, Alto da Bela Vista e logradouros que homenageiam algumas personalidades, como Nelson Mandela, pela história de luta, e Waldir Pires, governador da Bahia que proporcionou o fim dos conflitos e a consolidação do bairro, após dez anos.
Enquanto passávamos pela Rua da Resistência, Paulo relatava algumas coisas que aprendeu com os moradores mais antigos. ?Aqui, por muito tempo, se viveu sem saneamento básico, energia elétrica, água potável e, inclusive, posto de saúde?, destacou.
Nosso guia lembrou, ainda, que só a partir de 1992, após a oficialização do reconhecimento e existência do local, os moradores começaram a numerar suas casas e passaram a receber correspondências. “A gente precisava se mostrar para a sociedade como cidadãos e uma das principais características de um cidadão é ter um endereço, uma residência. Antes, éramos uma comunidade invisível”.
À medida que caminhávamos, ele chamava atenção para os estabelecimentos comerciais e enaltecia mais uma razão de orgulho da população. Paulo ressaltou que entre os comerciantes e funcionários do local, cerca de 90% são moradores de lá.
?Isso inclui, desde a simples sorveteria de Seu João, na Praça das Decisões, até os serviços de supermercados, com filiais dentro do bairro, além de uma variedade de atividades realizadas por pessoas que trabalham com comidas caseiras, customização de roupas, construção civil, sem contar a existência de uma produção artística e cultural muito forte, que envolve poesia, dança, teatro e música”.
Nesse momento, coincidentemente, uma moradora, em passos largos, nos ultrapassa.
?Agora, mesmo, está passando, Noélia, uma das artesãs do bairro?, disse, rapidamente, Paulo.
– Dona Noélia, fala com a gente, por favor! (solicitamos sua aproximação).
Muito simpática, ela atende ao chamado, retorna e comenta um pouco do seu trabalho e a sua relação com o Bairro da Paz. Ela é uma das fundadoras da área e trabalha, há dez anos, com confecção de brincos artesanais. Noélia utiliza matéria-prima simples, como conchinhas do mar, tubos de PVC e cipó, que ela mesmo busca no mato.
?Olha aqui, fica bem bonito!?, exibiu um exemplar que usava.
A artesã fez questão de frisar que o seu trabalho é, também, uma atividade educativa e pode ser muito bom para as crianças. ?O tempo em que elas estão nas ruas, poderia estar sendo usado para aprender a fazer uma pulseirinha. Meus filhos, mesmo, participaram desse processo?, contou.
Sem fugir à regra, Dona Noélia é mais uma que transpira amor pela sua comunidade. Atualmente está com 42 anos, mas quando tinha 11 havia chegado ao assentamento. ?Vi esse bairro evoluir muito. Nós somos pessoas capacitadas como esse jovem que está aí me filmando?, disse se referindo a Bira Mendes, que é ator, além de cinegrafista.
Seguindo em frente, bem no finalzinho da Rua da Resistência, a gente chegou à sede do Conselho de Moradores. Criada, desde a época dos conflitos, a organização ostenta o status de instituição-mor do bairro e juntamente com a Rádio Comunitária é uma ferramenta de resistência dentro da comunidade.
O Conselho é responsável pela aglutinação de ideias e por promover mobilizações com o objetivo de atender demandas essenciais às melhorias da qualidade de vida das pessoas. Não havia melhor lugar para conhecermos e reunirmos alguns moradores com depoimentos e relatos interessantes de suas relações com o lugar.
A agente de saúde Marinalva Souza é uma dessas pessoas. Ela está há 31 anos no Bairro da Paz, tem memórias vivas do período de batalhas e lembra, até hoje, dos tempos em que policiais militares chegavam montados a cavalo, dando proteção aos prepostos da prefeitura que faziam a derrubada dos barracos.
“Naquele momento, a gente só queria um lugar pra morar e nem pensava na dignidade humana, até, porque a gente nem tinha essa consciência”, relatou.
E foi falando em consciência que aproveitou para destacar a grande importância que a presença da Igreja Católica teve no processo de consolidação e desenvolvimento do Bairro da Paz. “Antes, tínhamos medo de lutar, mas a igreja nos preparou para sermos resistentes e saber reconhecer o nosso direito”, ressaltou.
Essa é uma opinião quase unânime entre os moradores e uma pessoa que bem respalda a informação é a professora Célia Guimarães. Ela e uma irmã deixaram a cidade de Itororó, no sudoeste baiano, e rumaram para a capital em busca de trabalho, naquela época em que as coisas ainda eram muito difíceis na antiga Invasão das Malvinas.
?Nós participávamos de uma comunidade católica no interior do estado e chegamos ao Bairro da Paz, através da igreja, que foi um dos pilares de nossa politização. A igreja sempre sinalizava: vocês precisam aprender a se organizar, e foi aí que criamos o Conselho de Moradores e saímos às ruas em mobilização?, lembrou.
Célia trabalha com educação desde que chegou ao bairro e é fundadora da Escola Nossa Senhora da Paz. “Tudo que eu sou, hoje, agradeço ao Bairro da Paz. Se eu morasse em outro lugar, talvez, não tivesse crescido tanto como aconteceu aqui dentro?, disse.
A professora, atualmente, desenvolve atividades com crianças na faixa etária de 2 a 5 anos e tem uma satisfação especial pela oportunidade de educar. “A partir desse grupo é que se forma grandes homens. Não adianta você dizer que quando tiver adulto vai entender a comunidade. Você precisa, desde cedo, compreender que lugar é esse!?.
Foi com o mesmo entendimento que Natanair Pereira do Sacramento, 56, dedicou grande parte de sua vida ao apoio à formação acadêmica dos jovens do bairro. Muita gente se orgulha disso. “Não fui seu aluno, mas lembro bem de quando eu ia buscar minha irmã e acabava acompanhando alguma coisinha”, recordou Anderson, enquanto ajudava na nossa cobertura.
No entanto, a “Dona Nair” guarda uma pequena frustração. Com muita luta, conseguiu, em 2007, ingressar como bolsista em uma faculdade de pedagogia, mas teve que parar. “Eu já me preparava para iniciar o TCC, quando a instituição foi extinta”, lamentou, afirmando que, nem por isso, se afastou do ofício ou pensa em desistir do diploma.
PRÓXIMOS PASSOS
A valorização que a educação sempre teve dentro da comunidade tem sido importante para o desenvolvimento da população do bairro, ao tempo que extrapola fronteiras de seus limites e desperta a atenção de instituições importantes.
Recentemente, o principal evento de tecnologia e internet do País, a Campus Party, fez sua segunda parada em Salvador. Na oportunidade, surgiu uma parceria interessante. Através do projeto Include, o Bairro da Paz vai ganhar um laboratório de robótica, que irá proporcionar aos jovens da comunidade aprendizado sobre programação de computadores, games e realidade virtual, entre outros temas tecnológicos.
O local onde o laboratório vai funcionar é uma espécie de anexo do Conselho de Moradores e estava recebendo alguns reparos na estrutura exatamente quando chegamos na sede. Carlos Santos era um dos moradores que emprestava a sua mão de obra e parou, por alguns minutos, o seu trabalho para nos dar atenção.
Uma das missões da Campus Party é promover o alcance da tecnologia para crianças e adolescentes de comunidades carentes, mas, para isso, o local precisa oferecer condições de higiene, segurança e energia elétrica.
“Nós conseguimos fazer parcerias com moradores do próprio bairro para que esse projeto acontecesse. Isso é um diferencial da nossa comunidade. O Bairro da Paz é assim: onde ele vê uma janelinha, ele busca abrir uma porta ali”, disse Carlos, com bastante entusiasmo.
As dificuldades encontradas pela comunidade para desenvolver os processos de educação nunca foram suficientes para impedir que eles acontecessem. Paulo de Almeida destacou, nesse sentido, que o problema da falta de espaço, por exemplo, para desenvolver atividades sócio-culturais é sempre superado pela força de vontade dos moradores.
“Se a gente não tem um auditório, a gente improvisa uma casa. Se nós não temos um centro cultural, usamos a praça, que, inclusive, já serviu um dia de sala de aula”, enalteceu o jornalista.
Prova concreta dessas iniciativas é o sarau, que acontece uma vez a cada mês na Praça Popular. O evento tem o objetivo de fomentar a cultura dos artistas locais nas mais variadas expressões: poesia, música, dança, teatro, e ainda promove um intercâmbio com artistas de outros locais.
“Vem gente de diversos bairros de Salvador, além de representantes de outras cidades baianas e, até, de outros estados. Já tivemos visitantes do Rio de Janeiro e São Paulo, ao longo das edições”, informou Paulo Almeida.
Quando saímos do Conselho de Moradores foi a vez de dar uma olhada no bairro, de cima para baixo. O comércio e a rua principal estão inseridos em um extenso vale, rodeado de morros. Chegando lá no Alto do Sossêgo é possível ter uma visão panorâmica e conhecer o aspecto geográfico do lugar.
O Morro da Bela Vista e o Alto da Felicidade fazem parte, também, da região que circunda o centro do Bairro da Paz. Dali de cima, a Estação do Metrô e o Parque de Exposições são pontos da Paralela que podem ser observados.
Pouco antes do meio-dia, nosso passeio chegava ao fim. Lembram que a manhã era ensolarada? Então, o calor era grande e a gente precisava de um refresco. Pra encerrar o encontro com chave de ouro, fomos à sorveteria de Seu João, lá na Praça das Decisões.
“Hoje tem de cajá, abacaxi, menina bonita, tropical, flocos, pavê, creme com passas, chocolate, coco com abacaxi, ameixa, coco tapioca e amendoim”, disparou aquele senhor simpático, enumerando os sabores do seu produto. “A bola é R$ 2,50, mas é do seu tamanho”, brincou.
Quase em frente à sorveteria um prédio chama a atenção de quem acabara de ter contato com personagens de uma história de conflitos com o poder público. No imóvel funciona uma Base Comunitária de Segurança. Pois é, a unidade da Polícia Militar, hoje, está ali para dar proteção aos moradores que um dia foram considerados invasores.
Atualmente, o braço do Estado se faz presente de diversas formas mas, certamente, nada teria sido feito se não houvesse a mobilização e resistência de uma gente que está sempre lutando por melhorias.
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