‘QUE LADEIRA É ESSA?’: Projeto resgata cultura e identidade de um canto histórico de Salvador
‘QUE LADEIRA É ESSA?’: Projeto resgata cultura e identidade de um canto histórico de Salvador
A Ladeira da Preguiça, presente em séculos de história da ‘cidade da Bahia’, ocupa um lugar ingrato na mente dos baianos. Outrora uma das mais relevantes vias urbanas de Salvador, onde nasceram tradições como o Banho de Mar à Fantasia no início do século XX e o bloco de Carnaval As Muquiranas em 1965, está comumente associada à violência e ao tráfico de drogas.
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Ciente de que a ladeira anciã merecia mais que isso, o morador Marcelo Teles, 31 anos, quis pensar numa forma de mudar as coisas. Neste mês, o projeto do Centro Cultural Que Ladeira É Essa?, responsável por desenvolver atividades artísticas e culturais com a comunidade e regiões vizinhas, completa quatro anos de história. ?É uma forma de recuperar a autoestima dos moradores daqui?, conta ele, que idealizou o projeto e passou a desenvolvê-lo, com um corpo substancial de parceiros, em setembro de 2013.
Com oficinas, eventos culturais, aulas de jiu-jitsu, judô e capoeira (modalidades unidas pelo nome ?defesa quilombola?), além de preparatórios para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e de intervenções artísticas pelo espaço da ladeira, o projeto é levado a frente de forma independente com a ajuda de amigos de diversas instituições, como o Museu de Street Art de Salvador (Musa), a Junta Salvador e a Livres Livros. “O projeto absorve todo tipo de conhecimento”, diz o MC Xarope, que faz oficina de rap na sede do centro cultural em troca de aulas de jiu-jitsu.
A Ladeira da Preguiça foi musicada pelas palavras de Gilberto Gil, devidamente cantadas por Elis Regina, em 1973. Relembre:
De humor diminuto, Marcelo é uma figura respeitada na rua, onde sua família vive há cinco gerações inteiras. Sua filha, que participa das atividades do projeto, já representa a sexta. Ao apresentar o painel grafitado nas paredes do local, aproveitou para educar quem pedia dinheiro na rua, numa forma de proteger a integridade da comunidade. ?Por aqui ninguém faz isso, não. A gente conversa sobre isso depois?, repreende.
ORIGEM DO NOME
No painel, que colore a ladeira e confere uma identidade viva e surpreendente àquelas casas, é possível ver imagens de homens negros carregando sacas do que o imaginário remete a se tratar de cargas de fumo e açúcar, produtos que movimentava a economia de uma Bahia que ficou no passado.
No tempo do Imperador, eram os escravos os responsáveis pelo transporte manual das mercadorias que vinham do Recôncavo por meio de embarcações como o vapor de Cachoeira, que desde a década de 1960 não navega mais no mar. Quando subiam, com dificuldade, o Dois de Julho, eram agredidos por gritos de ?sobe, preguiça!?, nomeando assim a maior das ladeiras da região. A história, com ares de anedota, é confirmada por historiadores e antropólogos, como a professora da Universidade de São Paulo Elisete Zanlorenzi em seu livro ?O mito da preguiça baiana?, de 1998.
Neste vídeo, Marcelo fala um pouco da história da ladeira contada pelos graffitis. Confira:
ORGULHO E AUTOESTIMA
Passeando pela Ladeira da Preguiça, a poucos metros da região da Conceição da Praia, pode-se observar um cotidiano todo próprio da comunidade, alheia às demandas de uma Salvador em eternos processos modernizadores. São pescadores, mergulhadores, costureiras, artistas, artesãos e mecânicos que aprenderam seus ofícios com seus pais e já viram muitas mudanças operando naquele endereço ao longo das décadas.
O descamisado Edvaldo Silva Santos, por exemplo, ajudava o vizinho no conserto de uma bicicleta quando avistou a reportagem e rapidamente se pôs a defender o bairro onde vive desde que nasceu, há 58 anos. ?A epidemia da pedra [crack e demais drogas] está em todo lugar, Canela, Campo Grande, Vitória. Não só aqui?, explica ele, que trabalhava como pescador e mergulhador no mar a poucos metros dali. Para ele, o Centro Cultural Que Ladeira É Essa? tem servido para ajudar no desenvolvimento dos jovens e crianças da área.
É Edvaldo que apresenta a reportagem ao sorridente Gabriel Cerqueira, de 52 anos. Olhando pela janela como uma daquelas namoradeiras típicas do interior de Minas Gerais, Gabriel é vizinho de porta da sede do centro cultural e já chegou a ser presidente da instituição — hoje o cargo é ocupado por Cris de Jesus, esposa de Marcelo Teles. ?A nossa luta é pelo pertencimento?, reitera, orgulhoso por ter sido um dos responsáveis por fazer reviver tradições do bairro como o Banho de Mar à Fantasia no ano de 2014. A festa acontecia todo domingo pré-Carnaval, mas foi descontinuada na década de 1990. ?Ano que vem eu vou de Cleópatra.?
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Piloto de lancha, massoterapeuta, músico e produtor cultural, Gabriel reafirma o principal propósito do projeto: politizar os moradores, torná-los críticos e queixosos do poder público e das forças que atuam sobre a região onde vivem. ?No início, as pessoas confundiam o centro com associação comunitária. Levou um tempo até a gente conseguir mudar isso?, explica.
CONTRA A “GENTRIFICAÇÃO”
Marcelo Teles não gosta de palavras como ?requalificação? ou ?revitalização?. ?Quando já tem vida não precisa revitalizar?, defende. O resgate da história da Ladeira da Preguiça é, então, essencial para a afirmação do orgulho de morar ali. E também para a compreensão daquela que é provavelmente a maior causa política propagada pelo Centro Cultural Que Ladeira É Essa?: a luta contra o processo de “gentrificação” do bairro Dois de Julho.
De nome difícil, a prática na verdade é das mais antigas. Por meio dela, áreas de boa localização habitadas por pessoas de baixa renda são continuamente degradadas pelo poder público. Intervenções público-privadas, posteriormente, revitalizam estas regiões, melhorando a qualidade de vida, valorizando os imóveis e expulsando as famílias tradicionais que ali viviam, beneficiando grandes projetos da indústria imobiliária.
?O tráfico não é problema do bairro. Nosso problema é que não admitem que negros e pobres tenham vista privilegiada para a Baía de Todos os Santos?, afirma Marcelo, que diz já ter visto moradores de regiões do Centro Histórico, como o Pelourinho e a Rua Chile, serem retirados de suas casas assim que elas são requalificadas.
Em 2013, em articulação com o Movimento Nosso Bairro É Dois de Julho, o Centro Cultural Que Ladeira É Essa? conseguiu reverter o processo de privatização em curso da Praia da Preguiça, que seria apropriada pela Bahia Marina, por meio de uma ação no Ministério Público Federal (MPF).
A nova frente é o Projeto de Lei 363/2017 que será votada no dia 20 de setembro, na Câmara Municipal. Na PL, propõe-se uma mudança na nomeação dos bairros de Salvador. O Dois de Julho deixaria de existir, dando espaço ao ?Centro?. No processo, a Ladeira da Preguiça seria dividida por dois bairros: o Centro e o Comércio, algo impensável a quem cultiva uma identidade do local há gerações. ?Através de ações na micropolítica, a gente consegue realizar ações que podem mudar a vida das pessoas?, advoga Marcelo.
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*Publicada originalmente às 6h20 (11/9)