PRA MATAR SAUDADES: 13 imagens que revelam a poesia em pequenas lembranças do Arraiá do Galinho
PRA MATAR SAUDADES: 13 imagens que revelam a poesia em pequenas lembranças do Arraiá do Galinho
O diafragma dispara. Pequenos universos se tornam prisioneiros cativos da imagem; resistentes ao dissabor do tempo. Em última instância, o Arraiá do Galinho jamais terminou.
Permanece vivo, em gravuras, ao desmantelo da estrutura, aos primeiros riscos do sol, ao rugido tedioso da segunda-feira, ao gosto amargo da bílis que escorre pela boca, ressecada.
As fotografias ativam o gatilho das emoções vividas naquelas noites mornas, de corpos quentes, calcificadas em uma estante fria e amontoada em alguma parte do cérebro.
O diafragma dispara.
O pulmão se enche de lembranças. As artérias vão bombear sensações até o miocárdio.
As mãos tremem. A pupila dilata.
Senhoras e senhores, o Arraiá voltou!
1) Os cinegrafistas
Braços erguidos como gruas registram o espetáculo épico. As mãos prolongam os olhos. As câmeras capturam a experiência. A arena das quadrilhas mistura a disputa dos estádios com a catarse dos teatros. Ainda que as lentes mirem o mesmo alvo, cada uma vai contar uma história. O momento é compartilhado, mas as lembranças são únicas.
2) Os churros
Sabor de infância frita em gordura saturada de anseios salpicada de flocos de delírios de pai vamos no tiro ao alvo e de mãe quero de doce de leite de uma mão grudada na mão e outra mão segurando saquinho escorre recheio de chocolate e é doce é doce doce é tão doce que chega arder na boca menino não lambe os dedos experimenta esse tio me dá outro de goiabada com queijo fica quieto menino senão nada de ingresso para a roda gigante.
3) O dueto
?É proibido bagunçar o coreto?, pensa em uníssono a dupla de capacete que ouve o trio de chapéu. Se a vigilância é no ritmo do xote, a única batida é a da zabumba e quando a sanfona fala, o cassetete se cala. Parece até letra de forró, mas é só mais um dia tranquilo para a turma de farda.
4) O líder
Eu não peço atenção. Eu sequestro a sua alma. Arrebato, encanto, hipnotizo. Com um gesto, exerço controle. Com o olhar, alcanço a eternidade e paraliso o mundo – ainda que por alguns minutos. Sou o bairro inteiro. Represento uma tradição. Só existe a dança. Só existe a música. Tudo ao redor baila em função da minha regência. O meu poder leva ao êxtase. Do alto, consigo me ver e constato o óbvio: quem está ali… não sou eu.
5) O pipoqueiro
Linaldo é de todo o lugar onde seja interior. Um imperador gentil que decide como um grão deve ser sacrificado: no sal ou no caramelo. Milho é semente que vive para se estourar e morrer pipoca. Sob o lume do fifó, aquele fio de doçura escorrendo pelo ar, deslizando na suave gravidade, como congelado em um lambe-lambe pela nostalgia. Linaldo é de todo lugar em que se toque no interior.
6) O bem Amado
Um sucesso faz um ídolo temporário, dezenas deles, somados, sucessivos, implacável, montados uns sobre os outros, são como tijolos de construir gigantes. Olhares miram um ídolo ali no palco, na frente, à distância de uma fotografia de celular, mas nunca tão perto assim para que se desfaça o mito, para que se desintegre o castelo de admirar. Amor de fã é tão bonito ? e nem mata com sabor de saudade.
7) O Amado
Atrás das grades, mas livres para amar. Amar aquele que já nasceu Amado. Amor perfeito. Os fãs têm, de vida, metade do tempo que o ídolo tem de carreira. Separados no espaço e no tempo, mas unidos pela música.
8) A Roda gigante
Roda de colorido gigante que produz vertigem e, antes que avisem, já é uma viagem… no tempo: uma miragem que transmuta adulto em criança e moleque em paisagem.
9) O crepúsculo
No arrebol do Arraiá, um astro se põe antes que os outros comecem a brilhar. A celebridade misteriosa completa a primeira das muitas caminhadas pela passarela dos artistas. Milhares ouvirão sua voz, mas, naquele instante, no silêncio do parque ainda vazio, a quietude amplifica a solidão.
10) O Gordinho
Era inevitável: sempre que olhasse aquele estado da multidão, veria a chance de uma moldura de gente. Um instrumento de celebração da alegria compartilhada, um instante em que transforma esse em aquele, aquele em aquele outro, o próximo no seguinte, tantos diferentes igualados na mesma imagem: muito mais que mil palavras seriam necessárias para a petulância de traduzir um sentimento. Um olhar atento, um dedo indicador investigando a superfície da foto em busca de um rosto conhecido. Ali já se testemunhava a estória no momento em que a História acontecia. Oi, querida, sou eu, estou aqui, mas estou em outro lugar, um lugar chamado êxtase.
11) A Rainha do Milho
Ali paira a Rainha do Milho, coroada de bandeirolas, gibão de cores, caracóis em aquarela levando para o particular infinito que se esgota no coreto. Em qual visor vai parar a selfie da musa do domingo no parque? Será um noivo na roça sequestrado pela saudade, traído pela grande cidade? Coração bicado, dolorido, visual colorido, sanfona inquieta no estômago, zabumba descompassada pelo peito? Onde estará a Rainha do Milho daqui a dois cliques?
12) O quadrilheiro
É uma arena, são gladiadores. Em jogo, o troféu. Em disputa, a glória. São guerreiros, lutam pelo direito a fazer da superação uma arte do cotidiano. Vê aquela gota de suor? Ali tem três horas de ensaios diários após um turno inteiro como caixa de supermercado. Vê aquela gota de suor? Ali tem a superação de um ex-marido violento, alcoólatra, que despreza pagamento de pensão. Vê aquela gota de suor? Ela desdenha da conta de energia que atrasou, do cartão de crédito no rotativo, da greve na escola do filho. Vê aquela gota de suor? É orvalho de vitória brotando da pele do lutador.
13) A quadrilha
Passou devagarinho o caminho, era passo ? carão, passinho -, era coreografia, quadrilha que é música, que é poesia e, antes que seja tradição, é meio caminho andado para o sagrado. Tinha que ser uma Capelinha, com seus devotos quase religiosos, no altar de campeão.
Vem, Galinho, chega rápido. Amanhece com seu canto que é o grito de que o mundo pode ser bem melhor. E uma ansiedade para que ele seja logo melhor. Volta, Arraiá. Volta…