
Bíblia e homossexualidade: uma reflexão sobre as interpretações
Atualizado em 10 de dez. de 2021 23h22
Publicado em 10 de dez. de 2021 09h00
Atualizado em 10 de dez. de 2021 23h22
Publicado em 10 de dez. de 2021 09h00
Foto: ilustrativa/Pexels
"O que você acha sobre a homossexualidade?" "Leva à condenação, como qualquer outro pecado, se não houver arrependimento". Foi o que respondeu o jogador Pepê, do Cuiabá, em uma enquete com perguntas sobre Jesus.
Volta e meia surge um evangélico dizendo que é ex-gay. Hoje, quem vai falar, é um gay que é ex-evangélico. Inclusive, é muito comum pessoas da comunidade LGBTQIA+ que tiveram experiências em igrejas cristãs.
Depois, ainda na enquete, uma pessoa cristã fala: "sou cristão, mas acho injusto condenar os homossexuais. Deus ama a todos". Pepê, então, responde:
"Concordo que Deus é amor, mas a generalização disso, nessa geração, tem levado muitos ao caminho errado. Aí ele faz uma citação bíblica e conclui dizendo que amar é falar a verdade, que ele não julgou, que ele não condenou, que ele apenas expôs o conhecimento que o Senhor deu a ele pela sua palavra, que é a Bíblia, um "manual de fé".
Presta atenção, agora, nisso, que é muito importante. Ele deixa duas citações bíblicas:
1 Coríntios 6:9-11
"Vocês não sabem que os perversos não herdarão o Reino de Deus? Não se deixem enganar: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou ativos"
Levítico 18:22
"Não te deitarás com varão como se mulher fosse. É abominação"
[Pepê] Conclui dizendo que é pecado. Enfim... Esse post do jogador gerou uma repercussão muito grande nas redes, e eu quero refletir um pouco sobre isso. Será que é desse jeito aí, como citou o jogador?
É importante refletir sobre isso, porque esse tipo de discurso tem muitas consequências e gera muito sofrimento às pessoas LGBTIA+. Além disso, para muitas pessoas, isso justifica a violência e a perseguição contra essa comunidade. O pensamento apresentado por Pepê, nesse post, é dos fundamentalistas religiosos, que dizem que querem aplicar a Bíblia ao pé da letra. Só que isso não é verdade, e Jesus nunca falou nada sobre esse tema. Mesmo tendo pessoas, naquele tempo, que hoje poderíamos chamar de LGBTQIA+ (diversas, inclusive!), Jesus nunca falou nada sobre esse assunto, e o que é pecado e qual o maior pecado são definidos pelo interesse do momento, para exercer algum tipo de controle social. Um jogo de interesses.
É por isso que esse mesmo livro, de Levítico, que o jogador cita, também diz que tocar o cadáver de um porco torna uma pessoa impura; que comer mariscos é abominação; que mulher menstruada não deveria ter contato com ninguém; que não pode plantar vários tipos de sementes no mesmo campo (ou seja, não pode ter uma horta), nem usar roupas feitas de dois tipos diferentes de material, e que não pode cortar o cabelo... Mas todos os cristãos fazem tudo isso e ninguém está preocupado de ir para o inferno por causa disso.
Outra questão, pelo próprio avanço civilizatório, é que algumas coisas passaram a ficar impraticáveis. Ou algum cristão vai dizer que não pode se aproximar do altar de Deus se a pessoa tiver alguma deficiência? Ou que pode ter escravos e escravas, se forem comprados de países vizinhos? Assim como está lá em Levítico.
Mas a principal questão são as mudanças feitas nas interpretações e traduções da Bíblia. De forma intencional! Tirando o texto do contexto em que ele foi escrito. É por isso que você encontra várias versões de textos e eles parecem caminhar na mesma direção, mas podem dizer coisas diferentes.
No original, essa citação de Levítico está sendo direcionada à prática de idolatria, já que na época existiam muitos outros deuses e as práticas sexuais estavam associadas ao culto desses deuses. Não tem nada a ver com afetividade entre duas pessoas da mesma identidade de gênero, livres e adultas.
Já em 1 Cortíntios, a gente vê como a tradução é manipulada no intuito de influenciar a mente das pessoas. Quando Paulo escreveu essa carta dos Coríntios, não existia o termo homossexuais, imagine "passivos" e "ativos" com o significado que a gente conhece hoje! Percebe como há uma distorção, um desvio mal intencionado? Nessa passagem, aparece no original duas palavras: "malakoi" e "arsenokoitai", que não existem conclusão sobre seus significados. E é por isso que em cada tradução, dicionários diferentes, você vai encontrar significados diferentes.
"Malakoi" aparece quatro vezes em todo o Novo Testamento. Nas outras três, significa "fino" ou "macio". Só nessa atribuíram à homossexualidade.
"Arsenokoitai" é ainda pior: a palavra aparece só duas vezes e é um neologismo feito por Paulo. Então, fica mais difícil entender exatamente o que ele quis dizer no texto.
Esse tema é bem complexo. Tem outras passagens na Bíblia que são associadas à comunidade LGBTQIA+, mas que na realidade estão dentro de outros contextos da época. Então, indico esse estudo bem didático da Igreja da Comunidade Metropolitana do Rio de Janeiro (ICMRIO), que é muito bom.
E o posicionamento de Pepê não é o posicionamento de todos os cristãos. Existem muitas igrejas históricas e movimentos de teologia inclusiva no Brasil e diversos outros países. Igrejas lideradas por pastoras, reverendos, bispas, padres LGBTQIA+...
Então, era isso que queria trazer aqui pra vocês, pra gente refletir um pouquinho sobre essa temática da Bíblia e da comunidade LGBTQIA+.
*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Aratu On.
Onã Rudá é nordestino, filho de Odé, ativista antirracista e LGBTQIAP+. Ele também é midiativista e fundador da Torcida LGBTricolor, do Bahia.
Instagram: @onaruda2