O Brasil precisa encarar sua herança misógina
Ao longo da história das civilizações ocidentais, as mulheres foram consideradas “o segundo sexo”. Isso foi descrito em um livro que leva justamente esse nome, publicado em 1949 pela influente pensadora e filósofa feminista Simone de Beauvoir. O que está por trás desse termo é a ideia de que o sexo masculino foi estabelecido como um padrão a ser seguido, sinônimo de humanidade, enquanto o sexo feminino é apenas o “outro”, uma espécie de anomalia da natureza. Foram nessas bases que a nossa cultura foi construída, o que culminou na violência de gênero que sofremos até os dias de hoje.
Na sua obra, por exemplo, Simone de Beauvoir destaca uma passagem do conhecido matemático e filósofo Pitágoras, que dá nome a um dos teoremas mais usados nas exatas. No sexto século antes de Cristo, ele escreveu que “existe um
princípio bom que gerou a ordem, a luz e o homem, e há um princípio mau que gerou o caos, as trevas e a mulher”. Desde os gregos, portanto, a gente consegue identificar pensamentos referendados que nos colocam em posição não apenas inferior, mas também de um antagonismo malévolo em relação aos homens.
Quando opiniões como essa são legitimadas coletivamente, ainda que muitas vezes revestidas por uma carapaça mais branda, se abre o caminho para todo tipo de violência. Afinal, o jeito mais eficaz de estimular o ódio e a agressão, seja contra uma pessoa ou contra todo um grupo, é proferir discursos que fazem as pessoas deixarem de reconhecer a humanidade umas das outras. Ao dizer que a mulher é inferior e foi gerada por um “princípio maligno”, torna-se quase automático privá-la de direitos e negar a existência de suas dores, até o momento em que se decide agredi-la.
Considero muito importante fazer essa contextualização histórica, porque só assim entenderemos que o problema com o qual lidamos é mais velho do que a gente imagina. Já são mais de dois milênios de uma misoginia que está enraizada na nossa sociedade e que segue nos violentando todos os dias. Apenas a partir desse entendimento é que nós seremos capazes de empregar um esforço coletivo e perene para combater de vez a violência de gênero em todas as suas formas.
(Atenção: a partir do parágrafo seguinte, o conteúdo da coluna pode despertar gatilhos a respeito de assuntos sobre violência contra a mulher e abuso sexual. Caso não se sinta à vontade, recomendo pausar a leitura).
Dando um salto no tempo e chegando aos dias de hoje, na semana passada li os resultados do relatório anual publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que reúne dados sobre os mais diversos tipos de violência no nosso país. Para a surpresa de poucas pessoas, o Brasil continua sendo um lugar extremamente perigoso para as mulheres. Mas o que chamou atenção foi o número recorde de casos de estupro registrados em um ano, quase 75 mil. Isso significa que a cada sete minutos, em média, uma pessoa é violentada sexualmente no nosso país.
O dado impressiona, mas certamente não reflete a real gravidade da situação em que nos encontramos. Precisamos ter em mente que muitas das mulheres violentadas são vítimas de agressores que residem na mesma casa, o que dificulta bastante a denúncia. Em 2018, por exemplo, o Altas da Violência projetou que, levando em conta a subnotificação de casos, a verdadeira quantidade de abusos contra mulheres no país pode variar entre 300 mil e 500 mil por ano.
Outro número que choca profundamente é a quantidade de menores de idade violentados. Dos quase 75 mil casos de estupros documentados no ano passado, cerca de 57 mil foram praticados contra crianças e adolescentes, sendo 88,7% contra meninas. Estatística que revela outra faceta cruel do machismo enraizado na nossa sociedade: as garotas são, desde cedo, vistas como objeto sexual. Vale lembrar que apenas em 2019 foi sancionada uma lei que proíbe o casamento de pessoas menores de 16 anos.
Se no quadro geral do país vemos uma situação tão ruim, aqui na Bahia também não temos motivos para celebrar. O número de casos de violência sexual cresceu entre 2021 e 2022, ultrapassando a marca de 4 mil vítimas. Dessas, mais de 3 mil eram menores de idade, proporção que revela consonância com as estatísticas nacionais. Com base nesse dado, podemos afirmar que, no mínimo, um abuso é cometido a cada duas horas no nosso estado. E não para por aí: cerca de 50 mil baianas denunciaram ter sofrido algum tipo de ameaça.
Não há tipo mais cruel de violência do que a imposição do medo. O medo nos paralisa, faz com que deixemos de sair de casa, impede que tenhamos a liberdade de desfrutar as coisas boas da vida. E é exatamente isso que todas as mulheres brasileiras sentem hoje, em maior ou menor grau. Nessa trágica “roleta russa” da violência de gênero que persiste no país, nunca sabemos se e/ou quando poderemos ser as próximas vítimas. Desta forma, deixamos de frequentar espaços que gostaríamos, evitamos explorar novas possibilidades e, consequentemente, abrimos mão de sonhar. Isso é de uma violência sem tamanho.
Embora não haja maneira trivial de resolver o problema, reconhecê-lo e reconhecer as suas raízes tão profundas é o primeiro passo. Por isso, não podemos negar a realidade: estamos em um fundo do poço civilizatório. A nossa sociedade falhou e segue falhando ao permitir que meninas e mulheres sejam tratadas como objetos, sendo violentadas e tendo seus sonhos retirados, enquanto o Estado pouco faz para transformar essa realidade. O Brasil só resolverá o problema quando encará-lo de frente e admitir a existência de uma herança cultural extremamente misógina e sexista.
Nesse cenário, é muito difícil ver o copo meio cheio. Mas a boa notícia é que, cada vez mais, temos ferramentas para começar a preenchê-lo gota a gota. Aqui no Centro Cultural Isabela Sousa, por exemplo, já promovemos ações de prevenção e combate à violência de gênero, e estamos sempre em busca de novas ideias que possam potencializar os nossos projetos nesse sentido. Além do mais, a crescente participação feminina em espaços de destaque deverá contribuir, a médio e longo prazo, para a derrubada de alguns estigmas que ainda incentivam as diferentes formas de violência que sofremos.
Por fim, cabe destacar que estamos perto de entrar no mês de agosto, em que tradicionalmente se promove o Agosto Lilás, campanha de conscientização sobre a violência contra a mulher. É um mês de muitas ações e gestos importantes que buscam dar visibilidade ao problema e estimular debates coletivos. Mas, para além disso, eu espero, de coração, que todas as autoridades responsáveis pela segurança pública possam aproveitar o momento para estudar, elaborar e aplicar políticas que sejam verdadeiramente eficazes na prevenção e no combate aos abusos e agressões de gênero. Não podemos seguir vivendo com medo, e esse é um recado que precisa ser ouvido por todos.
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*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Aratu On.